sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Do editor
O oitavo número d'Os Animais Evangélicos surge mais reduzido mas pronto a provar que nem todo o país pára para Carnavais. Nele
- o Samuel Nunes recria a mais importante gravidez indesejável de todas
- o Tiago Branco desmascara a mais bela fraude de todas
- o Samuel Úria mergulha nas águas do dicionário para sair uma nova criatura
- eu faço a reportagem do meu santificado carnaval
- e o Paulo Ribeiro entra na próxima grande polémica cinematográfica.
Agradecemos todas as referências que nos têm sido feitas nesta explosão recente de blogues de evangélicos.
TOC


"A Paixão de Cristo (por favor deixem-me abordar um tema actual de outro prisma)"

E a Virgem Maria Abortou Jesus!?
Maria estava assustada. Tudo se precipitara. Ainda sentia na pele o adejar do anjo que anunciava a gravidez. Ela, grávida! Como era possível! Ainda tentou argumentar com o tal de Gabriel: “mas, eu nunca tive relações sexuais! Estou noiva de José, mas nós nunca fizemos amor.” Depois o anjo disse-lhe para ficar descansada (como se isso fosse possível!): a sua gravidez tinha sido planeada. Planeada!? Não por ela! Muito menos por José, sempre tão correcto. A visita repentina à sua prima Isabel, tinha-a confortado bastante. Era a sua única confidente. Depois daquela subida até às montanhas, mal ela cumprimentou a prima, o seu filho começou a chutar contra as paredes do útero. Toda a aldeia falava do ventre curado de Isabel. Maria escondia o milagre que lhe acontecera. Já havia ensaios do coro tradicional das redondezas, para celebrar o nascimento de João. Maria meditava. Ponderava. Três meses passaram.
Qual a reacção dos seus pais? Sentiriam uma intensa vergonha social. A sua querida filha, já com a barriga a crescer durante o noivado. Só de pensar nisso Maria corava. O seu pai ostentaria uma fúria moral terrível, seguida daqueles longos silêncios sombrios. O gelo entre eles só iria derreter depois do nascimento do querido netinho. Aí voltaria uma frágil trégua familiar. Isto é ... se ela decidisse ir em frente com a gravidez.
E a reacção do José? Maria tinha ouvido dizer que ele ainda pensara deixá-la em segredo. Bem, à morte poderia escapar. Mas iria ficar na miséria. Sem emprego, sem futuro e sem recursos financeiros. Nem sequer um tostão para alimentar a boca que aí vinha. Isto é ... se ela levasse a gravidez por diante.
Ai, e a reacção das pessoas da aldeia? E as suas amigas? Num meio tão pequeno! Para todos os efeitos o pai da criança era desconhecido. Uma gravidez em circunstâncias tão ambíguas, com as explicações desajeitadas, os olhares furtivos, a acusação surda da marginalização. Não era justo. E, também não era justo trazer uma criança ao mundo assim ... Assim, desta forma tão pouco desejada. A sociedade seria cruel com este menino de paternidade estranha. Isto é ... se ela realmente tivesse coragem de ir até ao fim com a gravidez.
E o médico? Qual seria a sua reacção? Lembrava-se do seu carinho e paciência ao cuidar dela durante as doenças infantis. Estaria do seu lado, neste momento inesperado? Poderia explicar-lhe que a gravidez tinha sido por intervenção do Espírito Santo. Ele iria compreender. ... Pois, pois! Um homem de ciência, estava mesmo numa de aceitar grávidas por acção do Espírito Santo. Tásse memo a ver! O mais certo seria ele alertar as autoridades religiosas e judiciais, dizendo que era caso para tratamento psiquiátrico. E, todos iriam concluir, muito cientificamente, que ela não tinha estabilidade emocional para criar um filho. Ela conhecia a forma de operar daqueles saduceus e fariseus. Aliás, tinha de fazer uma nota mental, para avisar o seu futuro filho contra o veneno dessa gente. Isto é ... se chegasse a tê-lo.
Tanto desamparo. Decisões. Noites em claro. Embriões.
Estranho! Parece que ... Apetecia-lhe ... Sim! Apetecia-lhe cantar.
O meu Espírito se alegra em Deus meu Salvador,
Porque atentou na humildade da sua serva,
(os meus pais ficarão orgulhosos).
Deus me enche de bens, alimenta os famintos, despede vazios os ricos,
(o meu marido não me abandonará!).
O meu Deus se levantou, os soberbos dispersou
(a sociedade não me desprezará).
O Todo–poderoso me fez grandes coisas, para Ele não há impossíveis
(não, não estou louca!).
Ah Senhor, eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua vontade.
Do meu ventre, não sou dona! Este filho terei, ao Senhor o consagrarei!


(textos: Mateus 1:18-19; Lucas 1:26-56)
Samuel Nunes


A fraude
Quando estamos sós, solteiros, descomprometidos, livres, e nos sentimos miseráveis por isso, nada é mais sedutor que a ideia de uma companheira bonita, carinhosa, inteligente, e fiel. A nossa actual liberdade permite, e a nossa insatisfação impõe, um varrimento constante do horizonte, com um olhar crítico e atento, cobiçando ao de leve (para os mais conscientes) as potenciais candidatas. Sem necessidade de esforço, ou de consciência, definem-se as posições relativas e a nossa simpatia, empatia e interesse genuíno de geração espontânea, crescem milagrosamente em relação às eleitas, na devida proporção do seu lugar no ranking. Na pole position estão invariavelmente as de maiores encantos, e parece quase sempre verificar-se uma trágica proporcionalidade inversa entre o desejo e as perspectivas de mutualidade no interesse. Mas como tristezas não pagam dívidas, o sonho prossegue. Com ou sem rosto, sonhamos com alguém que nos ajude a ser quem queremos ser, que nos edifique sem exigências, que seja uma companhia, que nos compreenda e nos aceite como somos, que se entregue e nos ame. Isto nas fases mais serenas e conscientes (de carácter recessivo), pois nas outras, tudo isto está presente, mas como que em surdina, abafado por uma profunda e adolescente fantasia de desejo libidinosamente livre.
Independente das várias faces do desejo, o denominador comum a toda esta procura, é a forma como esperamos que a salvadora relação nos sirva. A força motriz da cruzada sentimental é a satisfação própria e é esse o móbil para todos os sacrifícios que aceitamos: pensamos que vamos ficar melhor do que estamos, pois vamos ter todas as desejadas regalias. Na incontornável fase da paixão, o psicanalista Scott Peck sustenta a ideia da “perspectiva da quebra das fronteiras do eu”, ou seja, o alimentar inconsciente da ideia de que muitas das insatisfações e limitações que temos vão ser extintas ou derrubadas na experiência da relação, e daí a visão paradisíaca e quase imaculada da relação e do outro.
Perante isto, impõe-se um comentário: as declarações de amor no início da relação são no mínimo extemporâneas. Nesta fase existem apenas intenções. Ninguém (penso eu) começa um namoro ou uma relação, por amor e entrega genuína à outra pessoa. Antes, embora de natural boa vontade, e num crescendo de afeição, procura uma cooperativa melhoria. Ao entrar numa relação, ambos acreditam que vão ficar melhor, e é isso que justifica a aposta e a entrega, não o altruísmo, nem a piedade.
E começa a fraude.
Com o tempo, vem o conhecimento do outro, e o verdadeiro conhecimento da ternura. Da partilha de experiências e da vida a dois surge a cumplicidade, que dá corpo a uma fidelidade e entrega que antes existia apenas em intenção e potência. Os carinhos, as mútuas provas de dedicação, os esforços, as tentativas e os erros, as delícias esperadas e inesperadas, e os olhares dentro do olhar, geram paulatinamente algo totalmente novo, e ausente nas equações iniciais – o cuidado e o interesse genuíno pelo outro, pelo seu bem estar, pela sua felicidade, e pela sua completude – o amor. Quando damos por nós, os móbeis da caçada primordial surgem mirrados e incompreensivelmente mais débeis, menos importantes, perante o outro que agora conhecemos, agora em pessoa, agora em carinho. Simultaneamente, o nosso próprio amadurecimento, vindo pelas lutas contra o nosso orgulho e egoísmo, pela progressiva aceitação mútua e entrega ao outro, começa também a transformar-nos. Por esta altura, começam a justificar-se as declarações de amor. Tornamo-nos seres mais amantes, e somos cada vez mais capazes de dar em vez de exigir, e nesta perspectiva, somos cada vez mais humanos, concretizando a intenção de Deus para a nossa criação. Por isso Deus disse que não era bom que o homem estivesse só. Porque a intenção da criação era o amor e porque a queda impunha uma escola onde pudéssemos aprender a amar. O casamento, a entrega, a fidelidade, no fundo, a família, como escola de amor, como sacramento de humanização. Aprender a amar os próximos para aprender a amar ao próximo. Na família, e para crescer nos estudos em humanidade, surgirão mais tarde os filhos, que elevarão os níveis de entrega e a capacidade de sacrifício, a dimensões completamente insuspeitas ao olho pueril do conquistador egoísta das primícias relacionais, mas apesar da fraude... é realmente bom que o homem não esteja só!
Tiago Branco

[Sem Título]
Cheguei ao absurdo de ir procurar “moral” e “ética” a um dicionário. Há dias em que acordamos com a estranha sensação que somos imputrescíveis baratas num putrefacto mundo de pessoas normais. Os valores mudam e eu estava com medo que me tivesse escapado alguma coisa, mas “moral” e “ética” eram idênticos num dicionário com quase 100 anos e no cd-rom da “Diciopédia” do ano passado. Kafka não era um crítico da sociedade, era um profeta do absurdismo por vir.
Eu tinha planeado não entrar em polémicas. Tinha, no meu íntimo, prometido abster-me das vulgaridades na abordagem de rebatidas temáticas da ausência de valores. Até pensava guardar para hoje uma reflexão sobre as gravuras do Paulo Ribeiro, da maneira como elas agregam ideias de um Rosseau (o Douanier, não o Jean-Jaques), Lichtenstein (o Roy, não o principado) e Francis Bacon (o pintor do século passado e não o filósofo do séc. XVI). Esforcei-me (oh, se me esforcei!) para não ceder ao moralismo desusado de um jovem conservador baptista, mas o dicionário tem sempre razão e afinal “ser moralista” tem tanto de mau quanto de subjectivo.
Não fosse o “diabo tecê-las”, aproveitei para ver o que era a “intolerância”. Se aceitamos entrar numa coisa chamada “os animais evangélicos” mais vale ter as vacinas em dia para precaver esperados ataques. Agora que sou uma pessoa informada dou-me ao luxo de rir caso ocorram tentativas difamatórias de traçar o meu perfil tendo em conta os adjectivos que procurei no dicionário. Revelo, a título de curiosidade, ser muito menos tolerante com pessoas viciadas no uso do WordArt do que com os defensores da despenalização das drogas leves. A intolerância está, hoje em dia, conotada com desrespeito e nesse caso tenho menor paciência para a estupidez estética do que para um confronto com ideias para as quais mantenho consciente reserva. Em contrapartida já não posso esperar de volta esse debate de ideias - hoje em dia basta-se ser contra alguma coisa para reduzirem a “ser-se do contra”. É, por isso, muito arriscado ser-se “moralista” já que o termo ganhou uma falsa conotação aviltante. Basta proclamar qualquer tipo de moral para ganhar um rótulo de tacanhez que se torna insuperável num debate. Claro que isso é mais vantajoso para aqueles que defendem ideais desprendidos da moral vigente, assumindo que se regem pela nova ética (uma ética pós-moderna?) humanista. Esquecem-se, se calhar, que eu hoje fui ao dicionário. Este confirmou-me que a ética nada mais é do que a ciência da moral.
Sendo assim, apelar à mesma moral passa a ser mais um argumento de defesa da imoralidade do que um de condenação. Se desaprovamos o aborto somos moralistas hipócritas e acabou-se a conversa. Se a nossa ética cristã nos impele a amar o homossexual mas não a homossexualidade estamos a ser moralistas fundamentalistas e acabou-se a conversa. Quem é que é, então, intolerante se a conversa se acaba? Para rebater o conservadorismo, haverá argumentos mais esfarrapados, gastos e descabidos que os do apontar o dedo acusatoriamente para os que estão a ser “moralistas” e “intolerantes”? Infelizmente essas palavras ainda metem medo a muita gente. Infelizmente ainda se prefere fugir da moral para não se ser indiciado de nada. Ou está o mundo mesmo pervertido ou muito me engana o dicionário.
Claro que já começamos a perceber alguns destes esquemas retorcidos. Basta julgar a recente polémica entre o “animal evangélico” Samuel Nunes e um grupo de homossexuais internautas. Para estes senhores é inadmissível que o Samuel Nunes tenha coisas como inadmissíveis. Asseguro que a questão continua paradoxal mesmo se chamarmos os nomes às coisas. Para os senhores internautas é escandaloso que alguém use a moralidade Bíblica para ir contra opções sexuais. Ir contra as opções religiosas do Samuel Nunes já é, por seu turno, uma acção que insta pôr em prática, quanto mais desrespeitosamente melhor. Isto porque não é ético estar-se contra a escolha sexual das pessoas. No entanto o dicionário diz-me que a ética é a ciência da moral. Onde está, pois, a moralidade da questão? Claro que os referidos senhores também não “toleraram” que o Samuel se defendesse das acusações de homofobia. Não é nada difícil entender que acusar de homofobia continua a ser uma potente arma de arremesso argumentativo. É um esquema quase politicamente maquiavélico este de criar a própria martirização para alcançar poder. Noto que com isto não nego que exista verdadeira e lamentável homofobia mas é mais lamentável ainda que ela seja inventada para auto-vitimação . É uma espécie de desejar baixas de um Pearl Harbor para legitimar o uso de qualquer bomba atómica.
Com um suspiro recordo-me não querer entrar em polémicas. Prometo, agora a sério, abandonar definitivamente o assunto para me poupar a uma desnecessária troca de palavras. Na Bíblia, a questão de deitar pérolas a porcos não se resume ao facto das pérolas serem demasiado valiosas para os suínos. O problema é que esses querem mesmo ração de porco ou restos e estão-se a marimbar para as pérolas. Ainda assim, e hoje falam-me tanto a Bíblia como o dicionário, não nos devemos preocupar se esbanjamos a moralidade com porcos que propositadamente dela se enojam.
Samuel Úria

Quando Jesus nos deixa
Frequento um retiro para jovens evangélicos. Tenho de apresentar três estudos bíblicos para cerca de duas dezenas de baptistas. Sei o que esperam de mim. Devo ser enfático, assertivo, convicente. Sendo na época do Carnaval a organização do acampamento aproveita para sugerir o tema “Máscaras”. O outro pregador de serviço insiste em afirmar que um crente não pode andar disfarçado. Uma espécie de “pão, pão, queijo, queijo” religiosamente certificado. Não me passa pela cabeça contrariá-lo. Pego em três episódios: Estêvão, Pedro e Jesus desfigurados. A face angélica do condenado ao apedrejamento, o discípulo amedrontado e o Messias irreconhecível no caminho de Emaús. Tento uma exegese menos militante.
Três dias depois a coisa acaba. Não fui grande mensageiro do púlpito. Fugi de parte razoável das actividades. No entanto, houve um jogo de futebol memorável. Porque a minha mulher não me pôde acompanhar deu para matar as saudades do espírito nocturno dos aposentos dos rapazes. As casas de banho eram de fugir: sem tampa da sanita não pode haver coração grato no louvor. Regresso a casa satisfeito com o divertimento e estafado com a quantidade de sermões à qual fui exposto. Preciso do meu lar. Apenas.
O nível de audição de prédicas pastorais na qual um jovem evangélico é educado é violento. Nem nos apercebemos. Receamos estar juntos sem que alguém traga a palavra do Senhor. Somos uns porreiros. O nosso Deus carece sempre de uma mãozinha para se fazer entender à humanidade. Não suportamos o silêncio. Temos dificuldade em ler a Bíblia sem uma ajuda devocional. Procuramos a inspiração mas a verborreia fica-nos a matar. Orgulhamo-nos dos nossos cultos palavrosos e barulhentos como a criança de dois anos que quer mostrar às visitas tudo aquilo que já sabe fazer. Os primeiros cinco minutos são vibrantes. Os restantes são um suplício.
O Messias no caminho de Emaús não foi identificado pelas suas palavras. Depois de uma grande conversa teológica com os dois viajantes, foi pelo partir do pão que foi reconhecido. Quando os olhos dos seus interlocutores se abriram já o Mestre tinha desaparecido. Será que é esta a nossa sina?
Tiago de Oliveira Cavaco

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

Do editor
O sétimo número apresenta-se. Nele
- conto o que acontece quando um incrédulo se apaixona por uma evangélica
- o Pedro Leal leva-nos à bola
- o Samuel Úria deixa a bola para ir ao culto
- o Tiago Branco relembra o primeiro amor
- o Samuel Nunes pega no bisturi
- o Timóteo Cavaco escreve-nos a crónica a partir do Chipre
- e o Paulo Ribeiro faz-nos a visita guiada na Nova Jerusalém.
Planeamos para breve uma modesta publicação em papel. Um desejo de saudáveis carnavais.
TOC


"A Nova Jerusalém também tem parte histórica"

[Sem Título]
Embora possa parecer um pouco insólito para quem vive neste cantinho ocidental da Europa, a verdade é que, nos últimos 6 anos o país que mais frequentemente tenho visitado é o Chipre. Certamente um pequeno país, mas cheio de grandes contradições: geograficamente está mais próximo da Ásia, mas a história, a cultura, a religião, quiçá, trouxe-o para a Europa; um território de reduzidas dimensões, mas que nem por isso deixa de estar partilhado por dois Governos que reclamam simultaneamente soberania; uma democracia moderna e progressista (na zona “livre” da ilha), mas que nem por isso deixa de ter a “última cidade dividida do mundo” – Nicosia, a capital; um punhado de metros quadrados onde no mesmo dia se pode estar na praia a gozar os encantos do sol e do Mediterrâneo e menos de uma hora depois já se pode estar de gorro e cachecol nas montanhas com neve.
Na altura que escrevo este texto, aqui estou eu mais uma vez, junto ao mar da Baía de Larnaca. Tudo está tranquilo! Certamente que estar aqui pode ser mais seguro do que arriscar uma visita a Nova Iorque, Londres, Paris ou Berlim, nos dias que correm. Mas a menos de 30 quilómetros de onde me encontro está uma “linha”. Uma linha que homens decidiram traçar: não uma linha imaginária, qual meridiano ou paralelo, mas uma linha real, a “Linha Verde”, fortemente vigiada e guardada por militares destacados pelas Nações Unidas. Para lá dessa linha, existe um povo diferente, uma língua diferente, uma moeda diferente, uma religião diferente. E, na verdade, não há nada pior no mundo do que duas pessoas ou dois povos se ignorarem mutuamente. Apesar de, precisamente na semana em que aqui me encontro, estarem a decorrer negociações visando a reunificação da ilha, a verdade é que as partes se ignoram mutuamente. Não querem sequer saber que existe vida para além da Linha Verde.
Não posso dizer que desconheça a ilha. Larnaca, Limassol, Pafos, as montanhas de Trodos, o norte “livre” da ilha, o “local de nascimento de Afrodite”, “os banhos de Afrodite”, tudo já calcorreei por mais do que uma vez. Afinal, um dia chega para ver tudo isto. Até mesmo Nicosia já tinha visitado. Ah, Nicosia, Nicosia! Não há espectáculo mais triste do que uma cidade dividida mesmo à frente dos nossos olhos. Tudo serve para marcar posição, tudo serve para exacerbar o ódio. Pode ser um muro, pode ser um prédio destruído pela devastadora guerra, pode até ser uma parte da muralha veneziana que em tempos protegeu a cidade dos ataques externos. A verdade é que de um lado e do outro do “muro” se vivem vidas completamente diferentes. Quem disse que “Berlim” tinha acabado? Nicosia continua a ser um símbolo do que mais horrível existe na vida: uma nação a lutar contra si própria.
No entanto, a utopia nunca esteve tão perto de se concretizar. Anuncia-se já para Maio deste ano a reunificação. E, hoje, tive oportunidade de acrescentar uma experiência diferente à minha existência. É difícil registar os sentimentos… não sei o que é mais chocante: saber que existe uma “linha” e vê-la à frente dos meus olhos, se perceber o que 30 anos de separação causaram. A verdade é que cruzei a linha! Do outro lado encontrei pessoas a viver literalmente no terceiro mundo. Provavelmente nem sabem que a uma distância, que em alguns casos não ultrapassa os 5 metros, a vida é completamente diferente. Não sei o que pensar, nem o que dizer. Também nada garante que a “civilização” faz as pessoas mais humanas e mais felizes.
Timóteo Cavaco

Major Alveja
Philip Yancey no seu último livro “In His Image”, fala do fascínio que as mulheres londrinas sentiam pelos pilotos da RAF (Royal Air Force), durante a 2º Guerra Mundial. Alguns confrontos aéreos podiam ver-se do chão. Os ágeis Spitfires, contra os poderosos bombardeiros alemães. O Major Alveja contra Hans. Até que a Alemanha não aguentou mais as baixas causadas pela precisão e determinação dos pilotos Ingleses. Numa frase lapidar típica, Winston Churchill resumiu assim a gratidão do povo de Londres: “em toda a história do conflito humano, nunca tantos deveram tanto, a tão poucos”. Depois da guerra quando os Majores Alvejas, de Inglaterra passeavam por Londres, nos seus uniformes cobertos de medalhas, as pessoas tratavam-nos como deuses.
Os Spitfires tinham todavia um problema. O único motor era montado na frente, a escassos 30cm da cabina do piloto, e os tubos de combustível passavam por cima da cabeça do piloto. Sendo atingidos, a cabina transformava-se numa bola de fogo. Nos 2 ou 3 segundos que o piloto levava para se ejectar, o calor derretia-lhe partes do rosto, o nariz, as pálpebras, os lábios, as bochechas, etc. Isto exigia uma operação plástica. Na realidade, exigia várias. Para as cirurgias faciais geralmente usavam-se enxertos de pele do abdómen ou do tórax. A operação era por fases. Primeiro, removia-se a faixa de pele com uma extremidade presa ao antigo fornecimento de sangue, enquanto a outra extremidade era ligada à área do rosto a enxertar, para que novos vasos crescessem para nutrir o enxerto. Por isso havia situações bizzaras de longas tiras de pele crescendo do nariz como se fossem trombas de elefante. Os Homens-elefante sujeitavam-se pacientemente a estes enfadonhos procedimentos cirúrgicos, monitorizando a evolução com os seus espelhos cromados. No entanto, à medida que as semanas de recuperação chegavam ao fim, os pilotos-pacientes deixavam de consultar o seu aspecto ao espelho. Apesar dos milagres da cirurgia plástica, havia danos irreparáveis. Embora fossem obras de arte restauradas, as faces de muitos eram apenas uma cicatriz. É impossível, reproduzir a flexibilidade transparente duma pálpebra. O tecido rígido cumpre a sua função de protecção do olho, mas não tem beleza. E o espelho de repente torna-se um carrasco. Longe do ambiente acolhedor da enfermaria, subsistirão os comentários maldosos da sociedade. Aí, ser-se-à apenas uma aberração. O espelho não mente. O medo causa arrepios. Muitos eram abandonados pelas suas mulheres e namoradas. Esses tornavam-se reclusos, vivendo ensimesmados e deprimidos. Outros eram aceites e celebrados. As suas companheiras ficavam firmes ao seu lado, e esses homens davam a volta por cima e foram extremamente bem-sucedidos. Esses homens, aprenderam um segredo: as suas mulheres eram os seus espelhos. Quando alguém desviava o olhar ou cruelmente zombava da sua aparência, eles olhavam para as suas esposas e namoradas que os encorajavam com um olhar de aceitação.
É dentro desta linha de pensamento que entra o “complexo do Quasímodo”, o corcunda de Notre-Dame, de Victor Hugo. De acordo com um estudo publicado na British Journal of Plastic Surgery, 20% das pessoas transportam deformações faciais (orelhas espetadas, nariz torto, marcas de acne). Mas o estudo revelou que na população presidiária 60% apresentam estas características. As conclusões são preocupantes. Certamente estas pessoas foram hostilizadas ou rejeitadas por parte dos colegas de escola, por causa das suas deformações. A crueldade das crianças terá levado a uma espiral de desequilíbrio emocional que culminaria em actos criminosos. O “complexo de Quasímodo” leva-nos a rotular as pessoas pela sua aparência física. “Olha o coxo!” “És mesmo cegueta!” E padronizamos a nossa receptividade, da mesma forma. Uma pessoa bonita, será obrigatoriamente, alta, magra, sorridente e com ar confiante. A “imagem correcta” vale tanto como o “politicamente correcto”.
Como cristãos temos de remar contra esta corrente tiranizante. O homem não é apenas um conjunto de tendões, músculos, vasos capilares, células nervosas e orgãos vitais. Ele é corpo e alma. A parte física do homem um dia volta ao húmus terreno. Mas a alma volta para Deus. E como cristãos, devemos ser espelhos. Espelhos, nos quais os outros vejam reflectida a imagem de Cristo. Espelhos, que possam reflectir a semelhança de Deus no espírito humano. Podemos ignorar e matar essa imagem de Deus em nós, ou podemos fazê-la brilhar. As mulheres de Aveiro preferem matar essa imagem de Deus. E alguém dirá: não está provado que o feto seja uma pessoa! E eu respondo: um caçador que atira a matar, na direcção duma restolhada que ele não sabe se foi provocada por um coelho ou por um companheiro, é sábio ou tolo?! Claro que é tolo! Na dúvida refreia-se a acção. Dêem aos fetos o benefício da dúvida! Não atirem a matar! “Se alguém derramar o sangue do homem, o seu sangue também deve ser derramado, porque Deus fez o homem segundo a sua imagem” (Génesis 9:6).

Textos de apoio, “In His Image” de Philip Yancey + Paul Brand; “A Mind Awake” de C.S.Lewis
Samuel Nunes


Amor, a quanto obrigas
Deus é amor. A sua essência é o amor. É o amor que O define.
O amor é entrega, uma dádiva. O amor é livre. É uma entrega voluntária que não exige nada em troca. O amor é por definição imerecido. No momento em que tentamos merecer o amor de alguém, este transforma-se numa troca, num pagamento. Ninguém pode ser obrigado a amar alguém, e ninguém consegue amar sendo obrigado. A liberdade da entrega, da dádiva do amor, é intrínseca à natureza do acto de amar. Na ausência dessa liberdade, o amor extingue-se, não existe, não é.
Assim, como poderemos nós amar se não formos livres para não o fazer? Como poderíamos entregar-nos, se estivéssemos entregues? Como poderíamos nós dar algo que não fosse nosso? Como nos poderíamos dar se não nos tivéssemos, se não pudéssemos mesmo dizer que não? O amor não existe se o não não for uma opção.
De todas as mensagens na Bíblia, nenhuma é tão clara como da primazia do amor. Quando perguntaram a Jesus qual era o mandamento mais importante, Jesus não disse que eram todos. Antes, falou com a autoridade e a sabedoria que só poderia ter quem tivesse partilhado com o Pai a intenção da criação. A sua resposta foi pronta e directa: o mais importante é o amor a Deus, em primeiro lugar, e o amor ao próximo. Penso que ao responder desta forma, Jesus deixou claro que se tivéssemos de esquecer toda a doutrina (toda a lei), e toda a ética (todas as regras) e reter apenas um ensinamento, seria este. Neste princípio se concentra toda a intenção da criação, e neste princípio se define a nossa humanidade. Fomos criados para amar. Para experimentar relações de amor com o Deus criador, primeiramente, e com os nossos semelhantes. A incapacidade de amar, de nos entregarmos relacionalmente, expõe a nossa queda e a nossa desumanização. Ser humano é ser amante.
Mas para podermos amar temos de ser livres de não o fazer. Para sermos humanos, temos de ser livres de não o ser. A liberdade é intrínseca à criação. Por isso Deus nos deixa não o ver. Por isso Deus se esconde até ao momento em que lhe dizemos que o queremos ver. Tal como as delícias do amor são reservadas aos amantes, as delícias do conhecimento de Deus são reservadas aos que Lhe pedem para O conhecer. Quando perguntavam a Jesus porque falava em parábolas, Jesus desconcertava a uns e esclarecia a outros. Repetia as palavras dos profetas: “muitos ouvindo, não ouvem e vendo, não vêm”, e explicava que os mistérios do reino estão reservados apenas aqueles que querem fazer parte do reino: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Na parábola do filho pródigo, Jesus explicou que o Pai de facto deixa o filho ir embora, se este quiser. Ninguém pertence à casa do pai sem escolher pertencer, porque a isso obriga o amor.
E o grande amor é este: que Deus nos amou primeiro.
Tiago Branco

Dia de derby, dia do Senhor
Em Domingo de Benfica vs Porto o fim da tarde passa-se na igreja. Não há casa cheia, a moldura humana não é exactamente a desejada, mas o Fevereiro quente permite uma temperatura ideal para a prática litúrgica
À porta auto-revistam-se os mais fervorosos adeptos (não vão eles terem-se esquecido da Bíblia ou do hinário no carro). Entra-se no recinto ignorando o primeiro pé a poisar. Ninguém se benze. Abjurar superstições é um pré-requisito para a filiação neste “clube”.
Começou. Os cânticos nas “bancadas” são quase um prolongamento dos sorrisos à entrada. Torna-se obsoleto qualquer apito inicial. Começou ou continuou?
Advirto, não me esforço para construir um bom relato. Deixo-me pelo resumo pouco alargado. Em nada posso compensar os que tinham oportunidade de assistir em directo e não o fizeram. Quem ficou em casa não é grande adepto. Nenhuma imagem se me afigura mais obesa, obtusa e obnóxia que a do treinador de sofá.
Corremos de seguida numa pequena porção Salmo 119. Terreno magnífico. Os que não se equiparam lêem pelo vizinho do lado. É fim de tarde no Inverno e a iluminação artificial permite a leitura da “lâmpada para os nossos pés”. Este terreno continua em perfeito estado, apesar de antigo, apesar de estarem todos, tão diferentes, a correr numa pequena porção.
Chega-se ao intervalo com Êxodo 20 no marcador (da Bíblia). Os cânticos voltam às bancadas, às vezes com palmas mas nunca com “olas mexicanas” porque somos evangélicos baptistas.
Aprendem-se minuciosamente as Leis do “Jogo”. No Êxodo, passes certeiros vão desmarcando, um a um, os mandamentos. Conhecê-los é aplicar sobre nós próprios a lei da vantagem. Ignorá-los é arriscar acabar a carreira contrariamente à de Paulo em II Timóteo 4:7. Na Graça cabe mais gente do que no Estádio do Maracanã, mas a porta de entrada continua a ser estreita.
Canta-se faltosamente, em compasso binário, um hino de compasso ternário. Os ouvidos mais sensíveis pedem cartão. O árbitro fecha os olhos. Fecham todos. Remata-se com uma oração. Golo!
Samuel Úria

[Sem Título]
Chama-se Jorge, e já foi “craque”. No início da década de noventa chegou mesmo a representar o F.C. Porto e a Selecção Nacional. Hoje, discreto treinador de uma equipa de juniores, veio até à minha igreja falar de si e da sua ainda curta experiência cristã. Atrás dele, o cenário resume-se a uma cruz de madeira envernizada, na parede clara, e a um púlpito esguio. E é com palavras também despidas que o Jorge constrói o seu relato.
Começa por recordar os tempos de glória. Os tempos das entrevistas de página inteira, nos jornais desportivos, dos miúdos acotovelando-se por um autógrafo, dos estádios cheios a aplaudir o drible bem sucedido. Tempos que pareciam tornar legítima qualquer ambição. No entanto, os excessos, e a insatisfação, insidiosa, não tardaram. E de nada serviram as fugas para a frente, forçando sempre um pouco mais o limite. A glória, tão efémera, transformara-se em desilusão cansada, e a morte surgia, então, como uma solução plausível.
Felizmente, o Jorge encontrou amigos que lhe trouxeram uma alternativa. E, quando fala agora dessa descoberta fundamental e do encontro luminoso que se seguiu, exibe a alegria serena, uma espécie de espanto, de quem achou o caminho para o lar, quando já se julgava irremediavelmente perdido.
Às vezes, de tão embrenhados em argumentação doutrinária e apologética, parece que esquecemos que o Cristianismo se apresenta, antes de mais, como uma vivência concreta. O Evangelho está muito longe de se reduzir a um “Guia com Indicações Úteis para Viver Melhor a Vida”. Ele aponta para a obra de Cristo e para a possibilidade de uma relação pessoal com o Criador do Universo. E desse relacionamento nasce um imperativo de mudança.
O Jorge fala agora em paz, onde antes havia angústia; fala em harmonia na família, em vez de conflito; e confessa, sorrindo, que conseguiu, finalmente, fazer a dieta tantas vezes começada e falhada.
Escuto-o, e não posso evitar a emoção. Neste mar de transformações é perfeitamente visível o milagre da salvação.
Pedro Leal

Da Honda CBR para o claustro
O Alberto era um rapaz que gostava de andar de mota. Quando decidiu fazer um curso de mergulho conheceu a Dina. As águas de Sesimbra testemunharam da paixão que nasceu bem abaixo do nível do mar. Quando o rosto da Dina achou graça aos olhos do Alberto, ele não poderia antecipar que se afeiçoava a uma evangélica. Desconhecemos se foi bênção ou castigo. O facto é que a regra das probabilidades foi desafiada. No nosso país um rapaz tem menos de um por cento de hipóteses de que, ao conhecer uma rapariga, ela seja evangélica. Ao Alberto calhou esta sorte. O Senhor sabe o que faz.
A Dina é uma crente dedicada. E se é certo que foi contra o bom-senso ao desencantar um não-crente, maior verdade é que cedo o colocou na ordem: em poucos meses o Alberto trocava os fins-de-semana de deportos radicais pela frequência dos cultos matinais de Domingo.
Todos os casais de namorados são despropositados. O mundo ocidental, demasiado alimentado, é competente a inventar passatempos. A sabedoria ensina-nos que só há três estados: solteiro, noivo e casado. No entanto o estatuto de namorado é um sucesso. É uma perda de tempo. Mas instituída. Não há como lhe escapar. Isto para sublinhar que para além das chatices costumeiras de um namoro, a Dina e o Alberto têm a questão religiosa a dedilhar as cordas da banda-sonora do filme.
Com a eficácia das mulheres a funcionar em pleno, o Alberto acabou por tomar “uma decisão”. Já lhe deram um curso de discipulado e, antes que se aperceba, ainda vai acordar uma manhã destas nas águas do baptistério. Mas a sua fé-de-leite ainda se degladia com a velha natureza. Os sábados em que troca os amigos do tuning pelos programas da União Feminina são uma árdua prova de amor.
Na igreja as pessoas gostam de ver o Alberto. Oram pedindo a Deus que ele se mantenha religiosamente ordeiro. Não querem que a sua Dina se perca com um malandro qualquer. Foi provavelmente à custa de tanta prece que o esforçado rapaz conseguiu travar o vício do tabaco. A nova lei mosaica que a casta namorada lhe impõe só condescende com dois cigarros por dia. Quando saem à sexta à noite, três.
Desconhecemos o futuro do Alberto e da Dina. Pertence à agenda divina. Apenas nos ocupamos com o relato literariamente exagerado de uma história real. O amor pode ser um dramático projecto evangelístico. Quem tem coração para sentir, sinta.
Tiago de Oliveira Cavaco

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O CORREIO ANIMAL

Navegava eu entre blogs quando bati nos animais evangélicos. E que cacetada, Deus meu. Reparo: o título está incompleto. A bom rigor favor alterar para "Animais Baptistas".
Porque é que os animais evangélicos são só baptistas? Afinal eu que não sou baptista sou um autêntico animal! Digam-me se para se ser animal evangélico é preciso pertencer à elite? Bem sei que o céu estará repleto de baptistas. Ainda sei que a maior parte deles julgará estar num céu baptista. Ora meus animais digam lá se um rafeiro como eu não poderia beber da mesma água. Prontos ok, estirpes diferentes. Mas que culpa tenho eu de não ter nascido baptista! Nobody is perfect! Ups! Sorry! Vocês são, por breves momentos esquecia-me, são baptistas.
A vossa grande contradição é, serem baptistas, porque senão reparem. O vosso tom é reaccionário - ok intelectuais ou pelo menos pretendentes a tal, este último fica-vos melhor, afinal a humildade fica bem mesmo aos animais - a liberdade de pensamento está-vos no sangue, sentem-se uns arautos da verdade e interrogam-se da mesma, são vozes in the wilderness, no entanto, são exclusivistas ou melhor são proteccionistas. Já agora, digam lá se preciso me converter num baptista para me tornar um Animal Evangélico?
Pedro, o Pescador

Se o estimado Pedro tivesse prestado atenção ao subtítulo desta página teria poupado tão palavrosa angústia.
Tiago de Oliveira Cavaco

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

Do editor
Está pronto o sexto número d'Os Animais Evangélicos. Nele
- o Samuel Úria combina Job e Uma Thurman
- eu corto nos doces
- o Pedro Leal corta nos gelados
- o Samuel Nunes diz que estes gauleses são doidos
- o Timóteo Cavaco fala de higienes pouco afortunadas
- e o Paulo Ribeiro delata um crime oculto na Bíblia
Como era prometido, incluimos hoje as primeiras respostas ao correio que recebemos. Até sexta!
TOC


"O amor espera(va) ou o 2º homícido bíblico não relatado"

[Sem Título]
Há algum tempo atrás contaram-me uma fábula. Como acontece em muitas fábulas, também esta se passava numa quinta, algures à face da Terra num tempo qualquer. Os protagonistas eram um cavalo e um porco. O cavalo vivia fundamentalmente do seu passado brilhante, de ente garboso e elegante. Os notáveis serviços prestados ao seu dono ao longo da vida e o seu carácter dócil mas determinado tinham conquistado nos seres humanos à sua volta uma inenarrável simpatia e consideração. Apesar de velho, desgastado e acabado, mantinha uma posição invejável na hierarquia social da quinta. O porco, por sua vez, era um mero suíno. O que pode ser um porco além de porco? Nem Orwell conseguiu elevar o estatuto dos porcos, muito menos nas fábulas.
Certo dia o trôpego cavalo, já falho de reflexos, não conseguiu calcular bem um salto e lá ficou com um dos seus membros (dianteiros ou traseiros, pouco interessa) ferido. Tal foi a pancada que o pobre cavalo não aguentava as dores e já nem de pé se conseguia manter. A terapêutica embora dolorosa para todos – mormente o próprio cavalo – era inevitável. O equídeo tinha de ser abatido para terminar de uma vez com todas com aquelas dores, mais dos donos do que do próprio, pois o que é a dor se não um tremendo suspiro da alma. Era difícil alguém conformar-se com este inesperado fim para alguém que tinha atraído tantas atenções. Faltavam apenas algumas horas para o desfecho. O cavalo sentia-se como um réu a caminho do cadafalso, um prisioneiro no corredor da morte. Entretanto, no meio de todo aquele desespero, ele ouve uma voz: era o porco a consolá-lo. Como é que um porco está no meio das cavalariças a meio da noite em amena cavaqueira com um cavalo, nem sabemos nem interessa. É uma daquelas coisas que a ficção permite e que a realidade tantas vezes complica a ponto de impedir tais deambulações. Mais do que consolar o cavalo, o porco deu-lhe uma sugestão. “Tens que ser forte e corajoso. Amanhã quando os senhores vierem, vais pôr-te de pé e assim eles já não te matarão, pensando que estás curado”. Só nas fábulas, os porcos têm boas ideias. Mas, o cavalo assim fez. No dia seguinte, os donos chegaram e depararam com aquela comovente, mas ao mesmo tempo surpreendente cena. “O cavalo está curado!” – exclamaram eles. Tão rápido quanto as suas mentes permitiam pensar, ordenaram: “Para celebrarmos esta cura e para nos deliciarmos, organizem a matança do porco!”
Haverá justiça na vida? Na de porcos como este certamente que não! Quantas vezes nos damos aos outros, nos entregamos por determinadas causas, nos esgotamos em trabalho e a paga é tão semelhante à do fim daquele porco. Dizia o meu velho professor de Física que no universo existem imagem reais e imagens virtuais. No entanto, o mundo mudou muito desde que me lembro de ouvir aquelas palavras há mais de 20 anos atrás. A pós-modernidade encarregou-se de criar uma coisa a que se chama realidade virtual. Dizia também o velho mestre que os espelhos criam imagens virtuais. Curiosamente, a palavra latina que dá origem à portuguesa espelho é speculum que por sua vez está na base de palavras aparentemente tão distantes quanto espectáculo e especular.
Não admira que muitos seres humanos à nossa volta se sintam confusos com o mundo em que vivemos. A Guerra do Golfo foi o que a CNN nos quis mostrar, as armas de destruição maciça ainda não apareceram e o Processo da Casa Pia deve ser alguma coisa entre o que vão dizendo os jornalistas e o que se sabe factualmente da investigação. Só apetece gritar: porca miséria!
Timóteo Cavaco

Véus, kippas e crucifixos!
A polémica que rebentou em França por causa dos véus Muçulmanos, dos kippas Judaicos e dos crucifixos Cristãos, levam-me a três comentários genéricos (não tendo, portanto, a marca registada das Instituições evangélicas falidas):
1 – Há uma distinção legal entre crenças e comportamentos.
As crenças não podem ser punidas por lei, nem pela sociedade civil. Mas, alguns comportamentos devem ser rotulados de “fora-da-lei”. Mesmo que esses comportamentos estejam enraizados em certas crenças, devem ser considerados ilegítimos. Aplicando: a crença no Islão, não pode ser condenada; mas um comportamento resultante dessa convicção que seja inadequado, deve ser repudiado. Entra nesta categoria a recusa, com base na sua religião, das mulheres Muçulmanas em serem tratadas por homens nos hospitais civis. É ofensivo para os profissionais de saúde. É uma invasão ostensiva da crença, roçando a ditadura religiosa. “É necessário que o servo do Senhor não viva a contender, mas deve ser brando para com todos, disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento, mas também o retorno à sensatez” (2 Timóteo 2:24-26)
2 – Há uma distinção social entre o direito à crítica e as falsas ilações dessa crítica.
Por causa do criticismo de que várias crenças são alvo, alguns cidadãos mais bacocos acham que os defensores dessas crenças podem legitimamente ser mal tratados. (aqui podíamos falar tanto de Muçulmanos, como de Cristãos ou Judeus) É pertinente salientar neste caso duas falsas vertentes que ramificam do direito ao criticismo
a) Por um lado, não é aceitável que a crítica de crenças e comportamentos seja denunciada como “mau-trato”. Não é crime pensar que o outro está errado, ou agiu mal. É apenas um dever moral.
b) Por outro lado, não é aceitável viver no medo das repercussões que essa crítica possa despoletar (estou a partir do princípio que a crítica é feita no espaço e no tom adequado). Se a lei francesa incendiar manifestações violentas e tensões sociais, não podemos culpar a lei, mas sim a reacção desajustada e a desinformação das pessoas.
Em suma, o legítimo criticismo público, não pode ser confundido com as reacções ilegítimas dos criticados. “O amor não pratica o mal contra o próximo, por isso o cumprimento da lei é o amor” (Romanos 13:10)
3 – Há uma distinção formal entre crenças e convicções.
As diferentes crenças moldam as convicções e os comportamentos. O Islamismo incita ao apedrejamento do diabo. O Cristianismo tenta amarrá-lo. Moral da história: as cordas e as pedras servem para definir trincheiras religiosas. Todavia, também acontece que as diferentes crenças enformem na mesma convicção. Por exemplo, no caso concreto, a diversidade religiosa entre Muçulmanos e Cristãos, é diluída na condenação conjunta do ataque ao Iraque. E sabe-se que os Franceses também têm simpatias com a causa Palestiniana. Aliás, esse crédito que o governo Francês tinha junto das Árabes, está no entanto em risco, naturalmente. Por isso, há causas comuns e questões sociais que motivam uma acção concertada entre defensores de religiões diferentes. E isso revela sensatez. Seja ela em nome de Alá, de Javéh ou de Cristo. “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em acção, fazei-o em nome do Senhor Jesus” (Colossenses 3:17).

Texto de apoio: “As Confissões” de Santo Agostinho
Samuel Nunes

O preço da perfeição
No ano passado, a Olá surgiu com sete novas versões de um conhecido gelado. A campanha publicitária aproveitou a coincidência do número e associou, a cada um dos novos sabores, um dos denominados “pecados mortais”. A mensagem implícita era evidente. O gelado, tal como o pecado, constitui um caminho eficaz, e legítimo, para o prazer.
Através da publicidade, da música, da televisão, apelos como este, ou parecidos, como o “não resista à tentação”, invadiram o nosso quotidiano, desvalorizando, primeiro, e ridicularizando, depois, o conceito de pecado.
Acontece, no entanto, que este conceito se situa no coração do Evangelho. Jesus Cristo veio, precisamente, salvar-nos do pecado. Se menosprezamos este, se lhe retiramos importância, estamos, de forma objectiva, a fazer o mesmo com a obra e a pessoa do Filho de Deus.
Quando Jesus nos ordena “sede perfeitos, como perfeito é vosso Pai que está nos céus” (Mateus 5:48) Ele está claramente a falar da nossa relação com o pecado. E o modelo apresentado, o mais alto e definitivo, é o próprio Deus.
Deus repudia liminarmente toda e qualquer forma de pecado. Devido à Sua natureza santa, não só não o conhece, não está contaminado por ele, como se insurge, intransigente, contra todas as manifestações do Mal nas Suas criaturas.
Por vezes, os cristãos parecem encarar o pecado como uma questão limitada à esfera pessoal, circunscrito apenas aos próprios actos e pensamentos. Contudo, e acatando o exemplo divino, percebemos que a responsabilidade do crente vai muito mais além.
Quando à nossa volta se banaliza, quando, pela repetição continuada, nos querem fazer crer que é “normal”, a mentira, a blasfémia, o adultério, a homossexualidade, o excesso, os cristãos são chamados, por Cristo, a agir. Em primeiro lugar, não participando nas ofensas ao Criador. Depois, denunciando-as, de forma inflexível e sistemática, quando elas acontecem.
O caminho da perfeição, apontado pelo Senhor Jesus, é, pois, o do não-conformismo. “Remar contra a maré”, não tolerando, nem condescendendo com o pecado. Uma voz profética, que sabe distinguir, com amor, o pecado do pecador, mas que não cala a justa indignação.
Pedro Leal

Fruta ou chocolate, reverendo?
No domingo passado o meu pastor pregou muito bem. Mas, ó ardil das trevas!, quis Deus que ao sair da casa de oração me viesse na memória não a admoestação pastoral mas uma tenebrosa visão naquele mesmo local recolhida. Durante o sermão a juventude ouvia. Isto é bom. Enquanto lambia chupa-chupas. Isto é mau.
Uma irmã generosa havia interrompido a classe de jovens da Escola Dominical para oferecer uma pequena dose de guloseimas. As Escrituras não condenam a sucção de alimentos doces e tão pouco este hábito vai contra o Credo dos Apóstolos. Mas duvido que o seu exercício favoreça a liturgia comunitária.
Por que razão um texto tão açucaradamente reaccionário? Como bom baptista que sou, não creio na essencialidade da ortodoxia no culto. Por isso aprecio tanto a extravagância pentecostal como a contenção católica. É uma questão de estilo. Ambas promovem, na sua disparidade, uma busca do crente pelo momento em que o seu Deus se revela na comunidade.
Crer em metas finais é fácil: a paz no mundo, a tragédia da pedofilia, água canalizada, auto-estradas sem portagens... São valores que não necessitam da existência palpável do Outro para a impressão de concórdia. Difíceis são as metas intermédias: qual o vizinho que trata do condomínio, oferecer sempre a prioridade ao da direita, louvar em conjunto com ou sem palmas... As nossas igrejas estão repletas de crentes com vívidas visões dos Novos Céus e da Nova Terra mas que deixaram a cama por fazer em casa.
A minha geração não é pior do que a anterior. Segue outras modas com virtudes mais discretas e despautérios mais decotados. Mas deve entender que a igreja é o lugar em que Deus está por se reunirem dois ou três em seu nome. São números que justificam convenções provisórias. E se, para um que seja, é feio comer durante o culto ainda menos se deve chupar pirolitos enquanto o pastor prega. A partilha da fé é um assunto sério demais para ser tomado com a leveza da paz no mundo.
Tiago de Oliveira Cavaco

“Kill Bill - vol I”
Um autor de banda desenhada que aprecio particularmente usa com frequência uma estratégia narrativa que, enquanto leitor satisfeito, acho impecavelmente eficaz. A abordagem é quase pleonástica: a empatia que geramos com as personagens coincide com o sofrimento delas. O autor pega nos protagonistas e leva-os ao Inferno. Destrói-lhes a vida, fere-os gravemente, retira-lhes os bens e a família, amachuca-lhes a honra e a dignidade. No entanto a ficção nos livros é capaz de muitas maravilhas. Uma delas permite-nos, pelo número de páginas que faltam, adivinhar que aquilo não vai ficar assim.
Subsiste a dúvida, ou a contenda, quanto à factualidade do livro de Job. Não é uma questão que me apeteça aflorar agora, mas admito que não me escandaliza existir “ficção divinamente inspirada”. Em qualquer dos casos nunca ponho em causa a mão de Deus por detrás desse livro. Seja d’Ele ou de um poeta usado por Ele, a história do malogrado Job jornadeia pelo mesmo tortuoso comboio descendente onde embarcam os personagens do autor de BD com que comecei. Mas o apeadeiro de destino é muito diferente. Quando estou lá em baixo com Job, ferido, despojado e doente, continuo a leitura preso na inacreditável perseverança, admirado com a sobre-humana persistência. Viro a página inspirado num exemplo demasiado santo para conseguir identificar-me. Quando mergulho na desesperança da história aos quadradinhos, vejo que há decididamente uma vitória nas folhas que ainda faltam ler, mas, tal como o personagem principal, o que me faz virar a página é a grotesca e muito humana sede de vingança. Na negrura das vinhetas, deliciamo-nos com as sangrentas “vendetas”.
De mim podem-se esperar as mais básicas conclusões. “O Homem é vingativo, a vingança é má e o Homem precisa perder essa sua natureza” poderia equacionar tudo o que venha a dizer. Contudo, se há alguma coisa que aprendi com os filósofos que me “interessam” é que, em abordagens de certos conceitos referentes ao “Homem”, equacionar com lógica e pragmatizar é tudo o que não se deve fazer de rajada. Agrado então aos comedores de letras e não me fico já aqui.
Disse-me um professor que uma boa obra artística cinematográfica tem que dar “um bocadinho de sono”. Continuava os seus pensamentos referindo que o indicador da nossa maturidade pode-se fixar no facto de sermos capazes de gostar genuinamente de um filme em que se “safem os maus e morram os bons”. Talvez neste último caso a referência estivesse na capacidade de abstracção da história, aplaudindo o filme pela sua estrutura e valor estético. Também posso entender que a análise artística de uma película revela maturidade quando é feita à margem dos princípios e gostos não “academizados” de quem a faz. Pessoalmente apreendi que é necessário fiscalizarmos a nossa ira contra injustiças - precisamos ser suficientemente maturos para não perdermos tempo a consumirmo-nos com preocupações advindas da ficção, mas, por outro lado e mais importante, não podemos mascarar, de moral irritada pela injustiça, a fatídica avidez vingativa. Não há nada de moral nesta vindicta. Não há nada de moral no desejo de sermos carrascos de pescoços que nunca podem ser designados para o nosso machado.
“Minha é a Vingança”, diz o Senhor. Nem que fosse eu o mais santo dos santos a poderia menear levemente. E se aludo a santidade, fico pasmado com o apóstolo Paulo que por vezes parece querer vingar-se de si próprio. Ao mesmo tempo que recebe a alegria da Graça, o homem conhecido antes por Saulo parece definhar por não lhe ser autorizado exorcizar, seja pela Lei ou qualquer sacrifício, o trágico passado de perseguidor, o ódio que nutria por Cristo, os olhos de Estêvão a perderem a vida. Numa noção de honra que nos transcende, o mais difícil de amar para o apóstolo era a sua própria pessoa; a cabeça mais difícil de não cortar, de abster do sacrifício sanguinolento, era a sua. Mas a Graça, afinal, bastou-lhe. Os “sacrifícios vivos, santos e agradáveis a Deus” bastaram-lhe. Ainda assim, ao contrário de qualquer BD, esse Paulo não entra em cabines telefónicas para mudar de roupas e sair a voar com os seus super-poderes (quanto muito fazia esta símile na transformação de Saulo em Paulo). O apóstolo padecia da mesma pestilenta humanidade que nós. Entenda-se, evidentemente, no sentido de condição humana e não no de altruísmo ou caridade, este conceito de humanidade. Mas a de Paulo estava lá, transcendida de maneira a esbofetear-nos de cada vez que a vingança nos leva a melhor. Transcendida também para cuspir no chão de cada vez que o sacrifício se confunde com desagradáveis tarefas, joelhos em sangue, penosas peregrinações réprobas.
Sou demasiado deambulante nos meus textos para conseguir fixar-me num tema. Por essa razão chego ao fim do limite mais ou menos imposto de linhas sem dissecar algumas coisas que pretendia sob esta alçada da vingança. Dada a razão, é provável que noutro dia retome a temática, prometendo-me maior concisão e menor dispersão. Até lá, entre outras coisas aguardo que a sequela do “Kill Bill – A vingança” chegue aos cinemas. A Uma Thurman de fato amarelo justo é uma figura no mínimo interessante. Mesmo assim o Job ainda é o maior!
Samuel Úria

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O Correio Animal

[Reacção incluída no blogue Renas e Veados a 12 de Janeiro de 2004]
Confesso que começo a ficar verdadeiramente intolerante e enojado com os homófobos. Cada vez mais me convenço que tudo não passa de uma fortíssima carência anal. Afinal o ânus dos heterossexuais não é diferente do dos gays, simplesmente é quase sempre vítima de uma total ausência de estímulos sexuais.. isto leva naturalmente a frustrações e carências, que na sua forma colectiva e agrupada torna-se especialmente triste e lamentável, confirme-se.
De uma vez por todas senhores homófobos, não é preciso ser gay para se gostar e praticar sexo anal, basta alguma imaginação e uma companheira dedicada. Irra!
Boss

Estimado Boss,
A sua acusação de homofobia merece reflexão. Não creio que o seja. Se por homofobia entende um “medo de homossexuais”, no sentido em que algumas pessoas sofrem de aracnofobia, e por isso fogem com medo de aranhas, não penso que seja esse o meu caso. Se entende que significa “aversão a homossexuais” ainda mais reitero a minha inocência. Todos os meses me entrego às mãos experientes do meu cabeleireiro, que é um amigo e é homossexual. Não o trato com paternalismos, nem como um animal raro, tipo: “é tão chique ter um cabeleireiro homossexual” (ai de quem lhe chamar barbeiro, ele fica bravo!). Mas, não posso deixar de discordar com a orientação sexual dos homossexuais. Todavia, isso não me leva a ter-lhes aversão. Eu não concordo com a traição, mas não tenho aversão a traidores. Nem tenho aversão a políticos por discordar do “tachismo” deles.
Quanto às “carências anais”, não sei que lhe diga. No meu caso, estou mais nas “inocências anais”. E a minha “companheira dedicada e com imaginação” que sugere está em conversações comigo sobre este aspecto. Estão abertas as hostilidades e inauguradas as brincadeiras sexuais cá em casa.
Espero que embora tenhamos iniciado a nossa conversa num patamar pouco amistoso, me dê o benefício da dúvida, acreditando que estou de boa fé, e vendo nas minhas palavras um valor facial. Os vários links que sugeriu (e que vêm no seu blog que eu sigo atentamente) têm sido um mundo de descobertas estéticas e semânticas, para mim.
Animalescamente
Samuel Nunes

Irmão Tiago,
aguardo sempre, com expectativa, a sexta para ler os " Animais ..." no entanto não posso estar mais em DESACORDO contigo sobre este assunto. Eu não me vejo a pedir aconselhamento pastoral para saber se posso ler o "Kamasutra" ou se havemos de usar chicote e cabedais porque penso que é um assunto que só aos casados diz respeito, mas agora que a ética sexual cristã não seja matéria de púlpito?????? Então o que é que é matéria de púlpito?!?! (...) Onde está a nossa missão profética????? Repara que eu hoje já não deliro com a pulseirinha " WWJD " mas já houve tempo em que fiquei cheio de inveja de não ter uma também (...).
Mas por que será que nós nos calamos e recusamos-nos a testemunhar sobre a Cosmovisão Cristã , em todas as áreas da vida humana, e esta evidentemente é tão apelativa (...)? Ademais o que é que nos tem a ensinar o exemplo da Igreja de Corinto? Eu, de facto, só quero ser discípulo de JESUS e de mais nada ou mais ninguém. Dizes com verdade que ninguém é mais santo por não ter dado "uma queca" antes de casar. Mas Jesus também cá andou e deixou-nos um exemplo de santidade que devemos seguir e a ele, somente, prestamos contas (...).
David Emanuel da Silva Cameira

Caro David,
em bom dia te respondo - terminei a leitura do "Ensaio sobre o amor humano" de Jean Guitton, que desde já recomendo.
Com o texto de há três semanas queria deixar claro o meu desagrado com a forma amputada com que os evangélicos pegam no corpo da castidade. Como era visível nas minhas linhas, a virgindade parece-me uma questão de bom-senso. E dificilmente entendo o trabalho pastoral sem ele. Nessa matéria a frase que dizia que não era matéria de púlpito é retórica ao serviço da ideia. Lamento que tantos evangélicos, tão acostumados a contorcionismos apologéticos para prevenir que as Escrituras não amachuquem as suas elaboradas concepções teológicas, percam a elasticidade para todos os outros escritos.
Porque gosto de usar a cosmovisão cristã por dentro das calças considero que devemos ser mais lentos a desfraldar bandeiras. Custa-me a redução que se faz da castidade à ausência de cópula. Só uma visão tão estreita de um valor espiritual nos pode transferir o perigoso sentimento de virtude própria.
Os adolescentes evangélicos pouco precisam do Manual Para A Sobrevivência À Penetração Fortuita. Se os ensinarmos a sobreviver sem telemóvel já será um subsídio valioso contra uma perspectiva tão material e ensimesmada da existência. Quando se quer vender a virgindade aos adolescentes como se fosse um novo toque polifónico, há que ter cuidado. Não vamos nós ficar sem rede.
Tiago de Oliveira Cavaco

Irm?o Tiago,
aguardo sempre, com expectativa, a sexta para ler os " Animais ..." no entanto n?o posso estar mais em DESACORDO contigo sobre este assunto. Eu n?o me vejo a pedir aconselhamento pastoral para saber se posso ler o "Kamasutra" ou se havemos de usar chicote e cabedais porque penso que ? um assunto que s? aos casados diz respeito, mas agora que a ?tica sexual crist? n?o seja mat?ria de p?lpito?????? Ent?o o que ? que ? mat?ria de p?lpito?!?! (...) Onde est? a nossa miss?o prof?tica????? Repara que eu hoje j? n?o deliro com a pulseirinha " WWJD " mas j? houve tempo em que fiquei cheio de inveja de n?o ter uma tamb?m (...).
Mas por que ser? que n?s nos calamos e recusamos-nos a testemunhar sobre a Cosmovis?o Crist? , em todas as ?reas da vida humana, e esta evidentemente ? t?o apelativa (...)? Ademais o que ? que nos tem a ensinar o exemplo da Igreja de Corinto? Eu , de facto , s? quero ser disc?pulo de JESUS e de mais nada ou mais ningu?m. Dizes com verdade que ningu?m ? mais santo por n?o ter dado "uma queca" antes de casar. Mas Jesus tamb?m c? andou e deixou-nos um exemplo de santidade que devemos seguir e a ele, somente, prestamos contas (...).
David Emanuel da Silva Cameira

Caro David,
em bom dia te respondo - terminei a leitura do "Ensaio sobre o amor humano" de Jean Guitton, que desde j? recomendo.
Com o texto de h? tr?s semanas queria deixar claro o meu desagrado com a forma amputada com que os evang?licos pegam no corpo da castidade. Como era vis?vel nas minhas linhas, a virgindade parece-me uma quest?o de bom-senso. E dificilmente entendo o trabalho pastoral sem ele. Nessa mat?ria a frase que dizia que n?o era mat?ria de p?lpito ? ret?rica ao servi?o da ideia. Lamento que tantos evang?licos, t?o acostumados a contorcionismos apolog?ticos para prevenir que as Escrituras n?o amachuquem as suas elaboradas concep??es teol?gicas, percam a elasticidade para todos os outros escritos.
Porque gosto de usar a cosmovis?o crist? por dentro das cal?as considero que devemos ser mais lentos a desfraldar bandeiras. Custa-me a redu??o que se faz da castidade ? aus?ncia de c?pula. S? uma vis?o t?o estreita de um valor espiritual nos pode transferir o perigoso sentimento de virtude pr?pria.
Os adolescentes evang?licos pouco precisam do Manual Para A Sobreviv?ncia ? Penetra??o Fortuita. Se os ensinarmos a sobreviver sem telem?vel j? ser? um subs?dio valioso contra uma perspectiva t?o material e ensimesmada da exist?ncia. Quando se quer vender a virgindade aos adolescentes como se fosse um novo toque polif?nico, h? que ter cuidado. N?o vamos n?s ficar sem rede.
Tiago de Oliveira Cavaco

sexta-feira, fevereiro 06, 2004

Do editor
Apresenta-se o quinto número d'Os Animais Evangélicos. Nele:
- tento fazer pouco daquilo que perdoo apenas ao meu falecido avô (por ter sido pastor há quase um século)
- o Timóteo Cavaco destrona a última besta do Apocalipse dos evangélicos: o pós-modernismo
- o Samuel Úria distrai-se durante o culto
- o Tiago Branco apresenta-nos o Oleg
- o Samuel Nunes ousa fazer apologética às custas dos seios das estrelas americanas
- e o Paulo Ribeiro chama o ascensor
Deveríamos incluir hoje a resposta do Samuel Nunes ao nosso leitor Boss (do blogue gay Renas e Veados). Por problemas de ordem técnica terá de esperar mais oito dias. Para a semana comentarei também, tentando não abjurar, o muito zurzido artigo sobre a Cruzada da Virgindade.
Muito nos honra e constrange as palavras amáveis que temos recebido dos nossos leitores católicos. O nosso obrigado sincero.
Para a semana os bichos estão de volta.
TOC

O elevador para a Arca de Noé

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

O cura temeroso
Um estimado pastor baptista da capital, com idade para gostar dos Pink Floyd, lamentava-se por um jornal tão consagrado quanto o Semeador Baptista possuir uma coluna fixa sobre cinema. Ora, nessas escassas linhas da última página aproveito o pretexto da sétima arte para escrever sobre tudo menos filmes. Pretendo aqui homenagear os pacientes leitores que já o perceberam há muito e, consequentemente, tentar denegrir com diplomacia o raciocínio do sacerdote assustado.
Desde a infância que me familiarizei com os tótens perante os quais os índios do Lucky Luke se dobravam. Nesse gesto se simbolizava um temor em que a matéria ocupava um lugar fundamental. Não me passa pela cabeça comparar a fé cristã com tão curvilínea liturgia. Por isso seria capaz de ter na minha prateleira de recuerdos inúteis um Buda sorridente ou uma Virgem chorosa, não fosse eu púdico a tentar disfarçar a minha tenebrosa e ocasional vocação de turista. Seriam apenas bonecos, como tantos outros. Sem precisar de ser benzidos ou exorcizados ou, ainda mais gravemente, levados a sério.
O ancestral temor em relação ao cinema resulta de uma bizarra actualização puritana da caça às colunas dobradas dos peles-vermelhas. Que acaba paradoxalmente perante o mesmo ídolo - o da crença supersticiosa que o mal habita na imagem. Na coisa. Na substância. Na molécula. Creio firmemente que quanto mais os cristãos perdem tempo com telescópios das tele-vendas para encontrar o pecado nas manifestações externas do mundo o mais se afastam daquela tese simples mas certeira do evangelho. Que coloca a semente da maldade no próprio coração do homem.
Não me passa pela cabeça tentar persuadir aquele reverendo vigilante a converter-se à cinefilia. Ainda menos afirmar que todos devemos gastar muito tempo em salas de projecção. Cada um usa a frigideira que quiser para cozinhar as carnes sacrificadas aos ídolos.
Tiago de Oliveira Cavaco

[Sem título]
Nos últimos dez anos, em particular, as “elites evangélicas” do nosso país e de outros têm-se deliciado a discutir o chamado Pós-modernismo. Das vezes que me tenho pronunciado sobre o tema, tenho tentado fazê-lo com uma certa moderação e não embarcando facilmente nos discursos catastrofistas e apocalípticos que alguns elegeram como mote.
Na verdade, toda esta conversa de que estamos a entra numa nova fase da história, numa nova “Idade” é um demonstração clara de que, afinal, ainda vivemos na Modernidade! Por essa razão procuramos ter as coisas tão estruturadas e sistematizadas. Arrisco dizer que a Pós-modernidade não é mais do que o "canto de cisne" da Modernidade. Continuando na linguagem simbólica poderá também ser a atraente "borboleta" resultante da "lagarta" moderna incipiente, tendo passado pela indefinida "crisálida" moderna e exacerbadamente racionalista.
A Pós-modernidade, se tem existência própria, será mais um estilo de vida do que propriamente uma escola de pensamento com agenda e motivações próprias. É muito provavelmente o "fruto maduro" que cai da "árvore da modernidade".
O pendor fortemente técnico, pragmático e fundamentalmente utilitarista do final da época moderna não consegue ser abalado pela Pós-modernidade, o que pode explicar a surpreendente procura de experiências de cariz espiritual, com um carácter místico muito marcado, mas de natureza fundamentalmente subjectiva e pessoal, o que se integra nesta visão utilitarista do fim da modernidade.
Assim, esta espiritualidade não é fundacional e sustentada em valores estruturantes, externos ao próprio homem (transcendentes, sobrenaturais), mas é tão só a satisfação da secura espiritual a que o homem do fim da Modernidade ficou sujeito.
Isto claramente demonstra que se verifica um contínuo entre a Modernidade e a Pós-modernidade, o que confirma a saturação na proposição de pensamentos verdadeiramente inovadores nos tempos que estamos a viver.
Sem percebermos completamente porquê, a visão mecanicista e tão duramente objectiva do universo moderno é levada a um extremo racionalista que explode metamorfoseando-se num subjectivismo generalizado que, porém, continua a manter o princípio sagrado da Modernidade adulta: o homem como medida de si próprio.
No fundo, a Pós-modernidade pode estar a dar crédito à máxima de que "os extremos tocam-se" pois a sua rejeição visível dos princípios universalistas e fixos da ciência moderna, está a tornar-se, ela própria num princípio demasiado abrangente e que começa a ser atrofiante, pois recusa-se a admitir outras alternativas que não sejam subjectivas em si mesmas. Não será esta mais uma herança da Modernidade? Um certo tipo de "ditadura intelectual", agora vestida com a pele da tolerância e do subjectivo? A espiritualidade como forma de experimentar e viver um corpo de doutrinas e convicções, pode-se afinal ter transformado na razão de ser de uma existência que procura explicar tudo aquilo que somos no contexto exclusivo em que vivemos.
Timóteo Cavaco

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Na minha Igreja falava-se de Pedro quando deixei a distracção guiar-me os olhos para dois jarrões lá à frente. Já estão ali há anos mas subitamente ganhei consciência de que lá continuavam a decorar o espaço entre o púlpito e o órgão. Nem sempre passaram despercebidos. Aliás, quem nos visita provavelmente permite que lhe escapem segundos de atenção para reparar nas duas peças decorativas que, de muito banais, têm uma pequena curiosidade concernente à disposição: O jarro mais largo está assente de uma forma normalíssima ao lado do mais estreito, que se encontra propositadamente caído, estendido no chão com a abertura voltada para as pessoas. Quando dizia que nem sempre passaram despercebidos remontava à altura em que eram novidade: aos reparos somavam-se tentativas de equilibrar em pé o jarrão caído. Sendo uma peça normalíssima, sem defeito aparente, é completamente possível apoia-la na base como mandam “as regras”, mas assim nunca permaneceu por mais do que uns escassos minutos. “Deixem estar isso deitado! É mesmo assim”, “Fica melhor um em pé e outro não! Fica mais giro”, “Larguem isso, é para ficar no chão. É decoração”. Eu fiz parte dos que apreciaram originalmente a disposição invulgar daquelas grandes peças. Faço parte hoje dos que se esqueceram das banais peripécias que os rodearam em tempos. Mantenho, ainda assim, uma ligação muito peculiar com tão desinteressantes objectos.*
*Ás vezes é difícil escapar à própria imaginação. Às vezes é difícil não vaguear pelas formas e pelas imagens:
Falava-se de Jonas e o jarrão no chão, com a boca virada para nós, era um peixe enorme que o tragava.
Um jarro em pé, inchado, imponente, ensimesmado. Um jarro deitado, esguio e humilde, reverente. Um fariseu e um publicano oravam.
Babel era erigida ao lado de um apocalíptico cálice derrubado.
Um pequeno Golias tombava perante o enorme David.
Jesus baixava-se e lavava os pés a um discípulo.
Não sei o que continha o jarro em pé. Do outro brotava água de um poço de Samaria. Falo de barro que falava comigo. O seu teatro abstracto veio-me à memória, mas isso a ninguém interessa. Falo de barro, escrevo sobre dois meros jarrões mas não me vou tentar com analogias. Quero desmarcar-nos de comparações. Não somos como aquelas peças; não podemos ficar no chão e alegar a decoração como um bom motivo para assim permanecermos. Não podemos igualmente ser um espelho subjectivo das escrituras, ser uma leitura apagada do evangelho para os outros decifrarem.
Talvez se chegue a uma sensação de perda de tempo no final deste texto. Afinal a quem pode interessar a ladainha dos jarrões? Contudo não me arrependo de a ter escrito, assumo mesmo que é tudo o que hoje tenho para oferecer. Por muito boa intenção que possua, nunca conseguirei ser tão bom teólogo como um particular par de jarros. Escuto-os num banco mais à frente de cada vez que uma Bíblia se abre. Chamem-lhes “sarças-ardentes” da loja dos 300. Não são imagens de escultura e apenas se tornam indispensáveis no compensar da minha falta de atenção. Renego metodologias e esquemas associativos para accionar a minha Fé, mas antes que todos se calem e falem as pedras, que me digam os jarrões para falar eu.

Pedro negava Jesus pela terceira vez. Quando o galo cantou eu estava distraído a olhar para um jarrão caído ao lado de outro em pé.
Samuel Úria

Quando dá jeito
Conheci há pouco tempo o Oleg. Jovem e robusto, tinha um olhar distante e uma expressão desconfortavelmente incaracterística. Depois de conhecer a sua história consegui perceber melhor o misto de revolta, sofrimento e resignação que do seu olhar parecia transparecer. O Oleg é Pastor Evangélico e Director de um Instituto Bíblico na Ucrânia mas veio para Portugal trabalhar como escravo para a máfia do seu país. É que o Oleg teve com o seu carro, um acidente em que danificou um jipe pertencente aos patrões da máfia local que, com toda a impunidade de que gozam condenaram o Oleg a ter de pagar o danos calculados por eles em 25 000 dólares americanos, uma fortuna num país em que um médico ganha cerca de 50 dólares por mês. Se o Oleg não pagar esta quantia, matam-lhe a família primeiro, e depois a ele. Faz cerca de um ano e meio que o Oleg deixou a sua família e a sua profissão para trabalhar cá, onde espera juntar dentro do prazo imposto o dinheiro que lhe resta.
Existem milhares de histórias destas. Ou melhor, existem milhares de pessoas com a vida nestes trapos. E quem rasga em trapos a vida destas pessoas são outras pessoas. Proxenetas, traficantes, violadores ou raptores são apenas pessoas, com a vida tão frágil como a nossa, mas que simplesmente destroem a nossa vida ou nos roubam a vida que queríamos viver. Todos estamos sujeitos a que nos aconteça algo assim. Todos estamos sujeitos a nos cruzarmos, ou pior, a termos de conviver com pessoas, que por vezes com artes perfeitamente legais podem fazer desmoronar quase tudo aquilo que valorizamos na nossa vida. Nós e eles, apenas pessoas.
Não consigo deixar de pensar em quantas vezes seria para algumas das vítimas tão simples resolver o seu problema. Quantas vezes não seria tão simples acabar com a vida de quem está a prejudicar a nossa. Vivemos porém, num país em que a maioria das pessoas não aprova esta via. Em Portugal, não aplicamos a pena de morte, nem colaboramos com países que a aplicam e é por isso que não repatriamos reclusos para países onde sabemos que vão ser executados. Tenta-se impedir o mal, mas protege-se a vida. De todos.
Quando se discute o direito de abortar, não consigo também deixar de reparar na semelhança destas situações. Ao partilhar as minhas reflexões sobre este assunto, tentarei fugir ao tom sensacionalista e à impetuosidade característica dos discursos radicalizantes, dos pregões e das manifestações. Tudo isso nos ensurdece e ajuda a escamotear o facto de estarmos perante um assunto delicado, eticamente denso, e de repercussões muito profundas em muitas vidas.
A meu ver, os mais fortes argumentos de entre os usados para defender a descriminalização da prática do aborto são: a pretensão de que o feto não é ainda um ser humano, (logo não se trata de homicídio), e o direito da mulher a decidir sobre o rumo da sua vida e do seu corpo.
Acerca do primeiro; parece-me lógico que tenhamos de traçar algures a linha que define o momento a partir do qual existe um ser humano. Parece-me no entanto, que não faz sentido traçar essa linha com base na existência órgãos, ou elementos de viabilidade biológica. A diferenciação de tecidos, a existência ou não de sistema nervoso central que permita sentir dor, a existência ou não de batimentos cardíacos, o desenvolvimento do cérebro ou dos sistemas vitais são frequentemente evocados para argumentar a inviabilidade biológica, a ausência de vida independente e alegar portanto que não se trata de um ser humano completo. Mas importa perguntar se existe alguma criança que aos doze meses, (por exemplo) tenha uma vida independente. Importa perguntar se uma criança à qual não se dá alimento, protecção e agasalho não é tão inviável como um feto sem batimentos cardíacos. A ausência de sistema nervoso central é tão letal como a ausência de cuidados neonatais. Em termos de dependência esta não acaba no nascimento, nem nada que se pareça. Só votamos aos dezoito anos!
Não me parece que faça portanto sentido afirmar, que não existe um ser humano antes de algum deste caracteres aparecer. Algumas das características do ser humano, muitas pessoas nunca chegam a ter, mas não é por isso que não são seres humanos. Desde o momento da fecundação que somos completos, seres humanos em potencial, biologicamente dependentes da mãe durante nove meses, educacionalmente dependentes durante muitos anos, e afectivamente dependentes a vida toda. A mórula, o embrião, o feto são de facto uma vida, e o aborto é de facto uma morte para essa vida.
O segundo argumento assenta no direito à liberdade da mulher. À liberdade de terminar com essa vida que lhe vai exigir cuidados, riscos, despesas e dor. Ter um filho exigiria uma dedicação, que não estamos dispostos, ou não nos sentimos preparados para ter. Seria demasiado prejudicial para a vida que planeávamos ter, e assim, optamos por acabar com essa vida antes que ela seja muito evidente. Terminamos uma vida que está escondida, para podermos continuar com a nossa. Para não nos sentirmos mal por termos dado o filho para adopção. Para nunca termos visto a cara dele, nem corrermos o risco de nos afeiçoarmos. Para ninguém poder dizer que não nos interessámos. Para ser mais fácil esquecer. Para podermos não usar contracepção, se não nos apetecer. Para ser mais fácil para toda a gente. Menos para aquela vida que acaba.
Todas as éticas humanas são utilitaristas e virá um referendo em que a maioria escolherá a uma ética. Pretende-se que a lei seja justa para as mulheres. Uma lei justa, defenderia os direitos laborais das grávidas e das mães, tentaria garantir assistência e condições de vida. Educaria, formaria e responsabilizaria a todos.
Mas a lei da conveniência, a que faz um by-pass ao valor da vida, só nos ensina a assobiar para o lado.
Parece que ajuda, por ser mais fácil, mas não é uma ajuda perversa?
Tiago Branco

O Seio da JJ e a Fuga de Deus
A reacção extremada e fundamentalista, à visão do seio de Janet Jackson (e que seio!), fizeram-me pensar na expressão de João Calvino: “coram Deo” (Institutas I:1.2). A frase completa é “cor et res coram Deo” e significa literalmente, “coração e objecto perante Deus”. Os pensadores mais Calvinistas têm usado esta ideia para referir que todos os objectos do mundo visível, assim como o sujeito dessa visão precisam de ser vistos em relação a Deus. Aqui não vou contra o pré-suposicionalismo. Ou seja, toda a epistemologia cristã afirma a priori que toda a acção humana deriva significado do acto criador inicial do Deus Eterno (L’Eternel, dizem os Franceses). Não há factos desprovidos de significado, nenhum intérprete é autónomo, e todo o conhecimento é ético-relacional (daí estarem condenados ao vazio existencial, os ateus). Nesta linha de pensamento, já Cristo dizia que debater certas questões com os incrédulos, era “atirar pérolas a porcos” (Mateus 7:6). Porquê? As razões são quatro:
1 – Para o cristão a realidade divide-se entre o Deus independente e o universo criado, metafisicamente distinto d’Ele, mas ao mesmo tempo eticamente responsável para com Deus. Se os factos do universo são reais é porque Deus os fez assim, se são racionais é porque Deus os interpretou primeiro. Assim, a ligação directa para o conhecimento vem pela revelação. E o método para atingir esse conhecimento consiste em “ser um sonhador dos sonhos de Deus e pensar os pensamentos de Deus, de acordo com Deus” (Van Til, A Christian Theory of Knowledge).
2 – logicamente fica também negado todo e qualquer conhecimento pela racionalidade abstracta. Dentro do pensamento cristão o ser humano coloca-se holisticamente diante de Deus. Todo ele! Sem tirar nem por: corpo e alma; mente, vontade e emoção, a que a Bíblia chama de coração (na verdade, no que toca a Deus, o coração tem apenas a suas próprias razões!). E todas as acções do homem, interdependentes deste triângulo relacional (mente + vontade + emoção), serão sempre coram Deo.
3 – Se tudo deriva significado de Deus, então não existem factos neutros. O sabor duma maçã e a soma 2+2 = 4, têm cores éticas. O observador cristão analisa cada facto e cada homem, pelo prisma das 3 matizes da peregrinação cristã: a criação perfeita, saída das mãos de Deus; a rebelião do Homem; e a redenção operada por Cristo. Aqui, alguém argumentará, que a redenção completa ainda não chegou. É verdade. “Toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora” (Romanos 8:22). Todavia, o cristão já tem as bênçãos do novo relacionamento com o criador-referencial-ético-relacional, e goza das “primícias” (Romanos (8:23) ao aplicar a redenção à sua epistemologia.
4 – O cristão está numa posição oposta àqueles que se recusam a ver os factos, e a interpretá-los num contexto coram Deo. O cristão está num patamar diferente do não-cristão (ver Rom. 1:21; 1 Cor. 1:21; 3:19; Calvino, Institutas II:3.1). As duas excepções são categóricas, porque por um lado, a supressão do conhecimento de Deus trai a existência prévia desse conhecimento, e por outro lado, a tentativa é frustrada, porque não chega a erradicar o conhecimento de Deus. A dupla terrível de excepções aparece em Romanos 1:19-25, e resume-se à criação e ao sensus deitatis, sentido da divindade. Calvino chega a dizer que mesmo o pecador não consegue “obliterar da sua mente” o sensus deitatis (Institutas, I:3.1).

Conclusão: o cristão que quiser comunicar eficazmente, deve estabelecer com o descrente que a supressão do conhecimento de Deus é um dilema ético, e não apenas intelectual ou do âmbito do sintoísmo (argumentação do tipo: “eu sinto que Deus existe”; “Cristo é verdade porque me dá paz e eu sinto isso”). O cristão terá de demonstrar que o pensamento do não-cristão, é uma “fuga de Deus”. E, assim poderá afirmar o seguinte:
a) toda a epistemologia construída a partir duma “fuga de Deus” leva ao abismo existencial.
b) tal atitude é categorizada como pecado. O Evangelho manifesta Cristo, precisamente como o redentor dessa dimensão acéfala do homem. A escolha de Aldous Huxley que diante do significado da vida, preferiu a ausência de significado, “pois não queria prestar contas diante de Deus”, é perfeito suicídio espiritual.
Assim, os fundamentalistas americanos, quando se deparassem com um seio desnudado, fariam bem em pensar no coram Deo de Calvino. Pelo menos não levariam a coisa tão “a peito”!

Textos de apoio: Institutas de João Calvino; VanTil, A Christian Theory of Knowledge; C.S.Lewis, They Asked for a Paper.
Samuel Nunes