sexta-feira, abril 30, 2004

Do Editor
O número 17 d'Os Animais Evangélicos traz:
- navios e eunucos
- Hollywood e o amor
- pregadores e convertidos
- sermões contra a luxúria
- cães em animada conversa
- e o Johnny Cash a saltar do comboio.
A partir desta semana nem só da sexta-feira viverá o homem. Todas as
quartas-feiras sai a Terra da Alegria. Seis boas razões católicas. This
could be the beginning of a beautiful friendship
.
TOC


"I'm alright now. I was riding on the devil's train, but I got off somehow", Johnny Cash.

[Sem título]
O apóstolo Paulo era um viajante e não um caixeiro-viajante. Não percorria terras a promover qualquer miraculosa Água da Vida. “Promoção” nunca faria jus aos actos do apóstolo. Disto deviam consciencializar-se determinados comerciantes ao citar Paulo em pregões decorados.
Teoricamente, platonicamente, toda a gente sabe que o Evangelho não é um produto que se comercialize. Estrategicamente, pragmaticamente, são muito poucos a absterem-se do reclamo espiritualóide. Os convertidos sentem uma dívida de gratidão que os constrange a ser conversores. Sendo detentores do maravilhoso fim os meios são bênção compartilhada. Não há maquiavelismos, conceito ingrato. Não há nas suas (nossas) cabeças.
Pouco me escandaliza a noção estratégica da evangelização. O Espírito certamente iluminará os contritos e humildes mensageiros preparados. A Grande Comissão que Cristo nos encomendou está ao alcance dos atentos e devotos, mas por que espírito vão ser esses iluminados ao aperaltarem-se para o ofício de “delegados de propaganda religiosa”?
O “Ide” é uma ordem clara, o irmos é uma tarefa óbvia. O “Ide” é uma ordem divina, o irmos é demasiado humano. Das recomendações de Jesus não deveriam resultar tarefeiros desonestos, como se fosse possível não corromper uma acção que depende de homens e mulheres. A solução é axiomática: fazê-la depender de Deus.
Ao tratarmos a mensagem divina apenas como um produto essencial ao bem comum estamos a afogarmo-nos em altruísmo corrompido. As boas intenções nunca foram o altar sacrificial que purifica as nossas estratégias. Maquiavélicos nunca! - no senso comum isso é sinónimo de malévolos. É conceito ingrato mas ouso dispará-lo.
O vendedor não dúvida do seu produto. O crente explica o Evangelho como infalível; não importa se há aquela interrogação teológica que o assalta todas as noites, se não consegue dormir a pensar na vontade de Deus, se desconhece o poder da oração. Os problemas materiais são esquecidos e anulados para efeitos de diálogo. Na explanação da sua Fé veste uma capa de infalibilidade que ofusca o receptor. Ofusca-se a si próprio. A capa é escarlata.
O convite é a despirmo-nos e não a vestirmo-nos. A armadura que o Apóstolo Paulo nos convoca a colocar (Efésios 6) não cabe por cima desse fato imaginário com que nos mascaramos de vendedores. Se percorro a analogia, então será ao testemunhar que vamos estar mais vulneráveis. A tentação não nos induz apenas a fazer o mal, também nos leva a fazer o bem incorrectamente. Repito pouco me escandalizar a noção estratégica de evangelização; o problema muitas vezes não é trazer truques na manga, é trazer mangas.
Evitem dar-me ouvidos se entendem que rogo uma limitação das acções evangelísticas. Evitem prestar atenção se acham que só trago críticas e nenhuma solução. Dêem-me ouvidos e prestem-me atenção agora: há, sim, que manter a acção evangelístca; a solução é axiomática: fazê-la depender de Deus.
Samuel Úria

[Sem título]
Duas excepções emocionantes
Uma porção dos Evangelhos, trazida num momento particularmente frágil, e o abastado comerciante do século XII transformado num pregador despojado. Pretendendo imitar Cristo, Valdo doou então os seus bens aos pobres e mandou traduzir o Novo Testamento do latim para a língua vulgar. Tinha agora acesso, de forma clara, às palavras de Jesus e dos apóstolos. E foi com base nelas que ele e os seus seguidores saíram a pregar ao povo. A oposição não tardou (a confrontação com as Escrituras punha a nu os desvios da religião oficial). Mas os valdenses não cederam. A Palavra de Deus que os tinha transformado dava-lhes agora ânimo para resistir.
A conversão de Alexander Smith, amotinado do navio "Bounty", e último sobrevivente do grupo de foragidos que pretendeu fundar um "paraíso" nos Mares do Sul.
Depois de vários anos salpicados com homicídios, alcoolismo, traição e imoralidade, envolvendo os amotinados e os nativos trazidos do Taiti, a ilha de Pitcairn conheceu finalmente a paz, quando Smith descobriu uma Bíblia esquecida no fundo de um baú. O impacto desse encontro foi tão grande que abalou não só a sua existência mas também a de toda a comunidade. Quinze anos mais tarde, quando o primeiro navio inglês aportou à ilha, o relato que trouxe foi o de uma sociedade quase perfeita. Pessoas instruídas e honestas, conhecedoras do texto bíblico, vivendo harmoniosamente e em paz.
A regra trabalhosa
O eunuco e mordomo da rainha da Etiópia que, de regresso a casa, lia as Escrituras em voz alta, mas não as entendia. E Filipe caminhando ao seu encontro, movido pelo Espírito, metendo conversa, e explicando-lhe detalhadamente o que estava escrito. E então, só então, o eunuco, respondendo ao anúncio de Jesus, exclamou: "Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus".
Pedro Leal

Meias-Estórias
Somos seres relacionais. Desculpem lá começar assim com um dogma, mas o tema que hoje gostaria de partilhar convosco, não me deixa espaço para as discussão deste princípio. Aliás, a pertinência deste tema vem precisamente do facto de todos estarmos envolvidos em relações, e de as procurarmos, de uma maneira geral, com insistência. Por ser um tema tão actual e tão importante para nós, temos assistido nos últimos tempos a uma série de sucessos de bilheteira em filmes da main stream do cinema americano e europeu que abordam as relações amorosas, e que através das estórias que contam, pretendem expor, senão mesmo propor a afirmação de novos paradigmas relacionais. Filmes como Love Actually, Along Came Poly, Lost in Translation, ou Cold Mountain (do mesmo realizador de The English Patient), questionam, cada um da sua maneira, a necessidade e o sentido de conceitos como a fidelidade, casamento e família. No seu conjunto, expõem a fragilidade das relações, a inevitabilidade das separações, e a injustificabilidade da fidelidade, ao mesmo tempo que afirmam uma misteriosa e incontornável vontade própria das nossas emoções, sobre a qual não temos, nem é suposto tentarmos ter algum tipo de controlo. A ideia de que nos assuntos do coração não manda a razão vem fragilizar ainda mais as já à partida débeis aspirações a uma relação estável e duradoira. Sob o domínio das nossas emoções, já não faz sentido lutar por relações que começamos a considerar pobres, quando encontramos alguém mais bonito, que aparentemente nos realiza muito mais, com quem nos sentimos muito melhor, cuja imagem não foi desgastada por lutas travadas em comum, no fundo, alguém com quem tudo parece ser mais fácil. A paixão por essa nova pessoa e pelos renascidos prazeres que nos traz, parece inevitável e não demoramos a assumir e a abraçar esse sentimento. É o começo de um processo de separação emocional que torna admissível, justificável, e quase até desejável o adultério, o grande protagonista das telas que ao mesmo tempo retratam e instituem a realidade. A crise da fidelidade dita a crise do casamento (que no fundo é um contrato de fidelidade), e da família. Algumas relações, embora com cicatrizes profundas acabam por sobreviver, mas para os que aprendem a assumir à partida o carácter tentativo e efémero das suas relações, é apenas uma questão de tempo até à próxima seta cupidosa. As fracas expectativas e o egoísmo matam à partida qualquer esperança numa relação sólida. Experimentar, andar, tentar viver junto e ver no que dá são verbos muito mais prudentes. Mantemo-nos à defesa, porque não queremos sair magoados. Afinal, só vale a pena estar numa relação se esta for boa para nós, e mais vale estar só do que mal acompanhado. Estes são os novos paradigmas relacionais que se instituem e que proclamam a libertação de uma moral que se diz rígida e com cada vez menos adeptos. As libertações sabem sempre bem. É por isso que as estórias das telas nos tocam. Com um sentimento de realidade e de sofrimento, juntamo-nos aos personagens nas suas lutas, ansiamos com eles pela libertação das relações insatisfatórias e celebramos com eles as descobertas de novos amores. Mas nas telas as estórias param ali. Não vivem o suficiente para o desgaste, não experimentam as mesmas desilusões e nunca se transformam no que começaram por desprezar. Nestes argumentos, a cobiça de novas pessoas, a disponibilidade para novas relações e as soluções fáceis nunca chegam a fazer mais vítimas. São meios–argumentos.
Tiago Branco

[Sem título]
Sou daqueles que está longe de pensar que a televisão é apenas rádio com imagem, ou que a televisão é mais completa que a rádio precisamente por recorrer a uma componente da realidade tão importante quanto a da imagem. Pelo contrário, acho que são meios com características diferentes e até mesmo com públicos um tanto diferentes. Tenho mesmo tendência a apreciar mais o trabalho que se faz na rádio, precisamente por que a falta da imagem tem de ser obviada com o recurso a outro tipo de artefactos e habilidades. A publicidade é um dos campos em que se nota mais o quão engenhoso é o mundo da rádio. Há, sem dúvida, excelentes anúncios a circular que sabiamente substituem a ausente imagem.
Tudo isto para dizer que, como ouvinte relativamente assíduo da rádio portuguesa, fiquei há algum tempo chocado com um anúncio que surgiu propagandeando determinado serviço prestado pela conceituada marca automóvel Mercedes. Nada me move contra todos aqueles a quem a vida tem permitido comprar e sustentar um Mercedes, até por que muitos destes automóveis chegam do estrangeiro a preços relativamente módicos, tanto quanto sei. Seja como for, o que me chocou foi ouvir a determinado passo do anúncio uma criança a perguntar ao pai se quinhentos euros não era muito dinheiro, ao que o pai responde de forma despreocupada: “Não! Não é muito dinheiro”. Retirando todos os relativismos e ambiguidades possíveis em relação ao valor real do montante em causa, a verdade é que não é qualquer português que tem a referida quantia para pagar mensalmente em troco de um serviço que a marca oferece. É arrepiante a ligeireza com que muitas vezes se tratam estes assuntos, apercebendo-se ou não os seus autores que tais insinuações – seja num anúncio ou em qualquer outro contexto – é humilhante para milhões de portugueses para quem quinhentos euros é precisamente todo o salário que levam para casa ao fim do mês e para muitos outros um valor que desejariam um dia chegar a alcançar.
Num país em que existem centenas de milhares de desempregados, salários em atraso, pensões miseráveis, já para não falar daqueles que se podem dar ao luxo de dizer que não foram aumentados este ano – quer isso dizer que mantêm o seu emprego – este tipo de “brincadeiras de mau gosto” não deveriam tomar tal destaque. Não sou adepto da censura, nem acho que esta ou qualquer outra marca não tenha o direito de comunicar com os seus públicos da forma que acha mais eficaz. No entanto, não me é possível calar a indignação perante tais apelos a este tipo de luxos que passam por cima de tantas e tantas cabeças no nosso país.
É nestas ocasiões que consigo vislumbrar como Jesus foi tão diferente do status quo vigente, na sua passagem pela terra. Sem falsas hipocrisias ou discutíveis evangelhos sociais a verdade é que me interrogo se os cristãos estão efectivamente preocupados pelos desprezados da sociedade. E estes não são apenas as vítimas de racismo, de violência doméstica, os toxicodependentes, sem-abrigo ou marginais. São todas aquelas pessoas que se esforçam honestamente no seu dia a dia por conseguir levar para casa mais ou menos que quinhentos euros por mês, isso pouco interessa. Homens e mulheres que literalmente se matam a trabalhar para que os seus filhos e outros dependentes possam ter o mínimo de dignidade na vida. Depois queixamo-nos que em Portugal a família não dá apoio às crianças, adolescentes e jovens, queixamo-nos do abandono escolar, do trabalho infantil e de tantas outras maleitas de que o nosso país continua a sofrer. Evitando generalizações perigosas, arrisco dizer que certamente esses milhões de trabalhadores honestos nunca vão sequer ambicionar ter quinhentos euros por mês para pagar um serviço de um carro que nunca terão. Para eles quinhentos euros é muito dinheiro!
Timóteo Cavaco

Sexo: ética e estética
O pobre do Beckam tem andado atrapalhado com as mulheres. Elas surgem do todo o lado a dizer que tiveram um caso com ele. É uma fartura! A Vitória vai-se aguentando à bronca, exala perdão por todos os poros. O interessante nos comentários das "amantes" é a referência inevitável ao "desempenho sexual" do futebolista. Ou ele é "geneticamente abençoado", ou gosta de "ficar por cima", ou então "beija lindamente". Tudo comentários cor de rosa. (suspiro!)
Dito doutra forma: há uma preocupação clara pela estética, e um desprezo pela ética. Ninguém achou mal trair a Vitória. Ninguém falou na vergonha dum flirt com um homem casado. Ninguém abordou a dor que as notícias irão trazer à família Beckam (há filhos envolvidos, certo!) Mas, na verdade é banal, esta atitude social. É banal, mas está mal! Quando uma sociedade valoriza a estética em detrimento da ética, é o fim da picada. Vejam os Romanos, os Gregos, os Árabes, etc.
É urgente uma ética sexual. De estética estamos nós servidos. Os anúncios de TV; os carros com beldade em anexo; as Modas; as revistas Ego, Men's Health, Maxmen (desta gosto), com os conselhos imperdíveis de como atingir o ponto G da mulher, enquanto se mantém a pose e o perfume dum Metrosexual. OK! Temos estética. E a ética!?
Só dois pontos para começar:
1 - pensar que o sexo tem só a ver com o corpo é um erro. O verdadeiro habitat natural do sexo é a alma. Sem alma há apenas ritual sexual entre macho e fémea. Sem alma temos cio. Com alma há sexo no sentido profundo que Deus sempre quis: Sexo em que há encontro de corpos e osmose de almas. Para isso há que haver uma transcendência dos corpos, para que o encontro seja ao nível dos desejos, dos sonhos, dos ideais, dos maneirismos ... e porque não das fantasias. Pois falar de sexo é falar de fantasias. Se não houver esta ética do sexo, temos apenas massagem de corpos e ginástica de mentes. Se não houver ética de sexualidade nunca se concretizará a promessa de Génesis: "os dois serão uma só carne".
2 - pensar que o sexo tem só a ver com a alma é também um erro. Somo seres totais. O local onde revelamos mais a nossa esquizofrenia é na cama. Por isso, uma estruturação completa do ser será sempre a missão de qualquer crente. Precisamos agir como seres totais na cama. Temos alma e corpo, e no sexo estas duas esferas da personalidade fundem.-se mais profundamente. Os sentidos do tacto, do olfacto, da visão, do gosto e da audição estão em alerta máximo. Mas, serão estas nossas capacidades sensoriais apenas do reino físico? Ou meramente de ordem espiritual? Certamente que não. Eu "sinto" um por do sol com a visão e com a alma de poeta e artista; eu sorrio debaixo da chuva de verão com o olfacto que me traz a terra molhado aos sentidos, e com a alma plena de felicidade pela beleza da vida. Ora, a plenitude dos sentidos expressam-se como nunca quando se faz amor. É a alma em deleite, experimentando todo o potencial de ser alma. O genuíno prazer é sempre uma experiência de conjunto: alma e corpo. O cristão não é Platónico.
Resumindo: nem a mecânico do sexo, nem a beatificação sexual são alternativas para o cristão.
Samuel Nunes



Quatro patas e um bom coração

Por cada três ou quatro simples palavras que debito acodem-me à língua como mosquitos ao vinho punhados de palavras maliciosas e murmurantes”.

Cervantes coloca esta frase na boca de um cão. Numa noite dois canídeos são surpreendidos pelo inesperado dom da fala, que resolvem aproveitar num animado colóquio filosófico. Entre tantos detalhes narrativos que revelam nas suas memórias, os quadrúpedes reflectem sobretudo sobre as misérias humanas. Adequa-se pensar que quando as palavras dos homens já não são suficientes para a penitência, só os animais nos podem vir em auxílio. Para além da oratória espirituosa, os cachorros de Cervantes são humildes pecadores em contrição. A confissão da maledicência. Quatro patas e um bom coração.
Na reunião de oração de quinta-feira da Igreja Baptista de Moscavide, o pastor estimula os crentes à oração. Numa prece alongada, uma irmã descreve situações com pormenor e detalhe científico. Ao chegar ao fim, emociona-se. Quando diz “tu conheces tudo, Senhor” já a sua voz vacila evitando o choro. Contradição sublime. Enquanto fazia o ponto da situação espiritual alheia a irmã teve precisão técnica e eficácia lógica. Termos apropriados e discurso fluente. Abeirando-se daquilo que se julga serem as suas próprias angústias, encontrou na linguagem não uma ajuda mas um estorvo. Sem tradução simultânea deixou que fossem as lágrimas a interpretar apressadamente o que a língua não deixava pronunciar.
A importância de “dar testemunho” é incontornável na cultura protestante. O termo é batido e até as criancinhas em idade pré-escolar conhecem a expectativa que cai na sala de oração quando aquele irmão que andou na droga se levanta pela primeira vez para ir à frente falar sobre o seu encontro com Jesus. E se é certo que somos tímidos na nossa ausência de confessionários, volta e meia a catarse vem no desabafo público do pecado privado. Pena é que tantas vezes o entendimento do testemunho redunde numa propensão para a tagarelice.
Nós, evangélicos, somos prósperos em detalhes técnicos: a diferença entre adoração e louvor, a distinção entre conversão e santificação, a nuance de pedir e o pormenor de interceder, entre outras bentas minúcias. Enquanto olharmos para a comunicação como se de um quadro de palavras cruzadas se tratasse permaneceremos no nível lúdico de charadas silábicas. Pequenas crianças a juntar vogais com consoantes. Mas acontece que o evangelho é muito mais do que jogos de vocábulos.
Já Tiago dizia que a língua era fogo. Terão Derrida e Wittgenstein ido tão longe? Entre atear incêndios e servir de bombeiros, as possibilidades comunicativas são diversas. E nem precisamos de voltar à excelente proposta de Cervantes na eloquente parelha canina. É o evangelho de Lucas que afirma que ao nosso silêncio as próprias pedras clamarão. Desde moderar a maledicência a reaprender as virtudes do silêncio, de ser testemunhas capazes a confessar os nossos pecados, já temos trabalho de casa que nos chegue.
Tiago de Oliveira Cavaco

sexta-feira, abril 23, 2004

Do editor
Com o número 16 d'Os Animais Evangélicos chegam:
- Presidentes da República
- Humphrey Bogart
- Léon Bonnat
- Jim Henson
- Lyon de Castro
- e Gomorra.
Sim, o pluralismo é isto.
TOC


"Gomorra 2004".

O ofício que deve inspirar o Presidente
Nas últimas eleições presidenciais votei Sampaio. Eram tempos de ainda maior ignorância política minha que os de hoje. Na adolescência tinha metido na cabeça que era de esquerda e os anos do cavaquismo eram inspiração fácil para quem tinha de fazer letras para a sua banda de punk rock. Recordo-me de umas declarações infelizes deste Presidente da República a uma televisão britânica, como que se desculpando pelo país que representa manter uma lei tão “conservadora” em relação ao aborto. Não gostei nada. Juntamente com umas leituras mais abençoadas e o sereno abandonar dos vigores da puberdade consegui perder a mania de ser de esquerda. Até aqui me ajudou o Senhor.
Na semana passada ouvi parte da conferência de imprensa que Bush e Blair deram no jardim da Casa Branca. Existe efectivamente um oceano a separar o nosso PR do PR americano. Apontem-se algumas diferenças substanciais.
O PR dos EUs fala como um pregador: uma tendência para moralizar, uma excessiva simplificação da linguagem, um optimismo a raiar o infantil, uma ameaça de paternalismo. O PR de Portugal fala como um professor do ensino secundário: ignorância disfarçada de cultura geral, pavor de enfrentar conflitos, ideias banais sob fases rebuscadas, um egoísmo dessimulado.
A igreja é tão necessária quanto o liceu. As aulas de Filosofia e a Escola Bíblica Dominical. Chumbar por faltas e adiar a data do baptismo. Estudar na véspera e entregar o dízimo. A tinta que escreve “aprovado” e um “aleluia” altissonante. Todos diferentes, todos iguais.
A terra a quem a trabalha, o púlpito a quem prega, a aula a quem ensina? Não necessariamente. A graça é sempre mais visível no deslize, na ausência de formação profissional, no defeito de fabrico. Só o imbecil se impacienta e não perdoa. Sem perder o respeito por todos os professores do ensino secundário e pregadores que conheço (a minha família é abundante nas duas classes) sugiro outra inspiração para o cargo de Presidente da República. Aproveito e até espiritualizo, que não é meu hábito. A do carpinteiro. Tal como o Senhor Jesus. Ao menos é uma profissão que assume os pregos.
Tiago de Oliveira Cavaco

Cristo, ao vivo e a cores!
Talvez seja o meu filme favorito: Casablanca. Com um pormenor, feito por-maior ... a preto e branco. Aquela desolada espera na Gare du Nord, em Paris, à chuva, é de antologia. Humphrey Bogart é o existencialista à la Camus: "I stick my neck out for nobody", com laivos de Picasso apaixonado por Jaqueline: "You can play for her!"; e a Ingrid Bergman é ... linda. Eu não a deixava partir no avião, mesmo sendo para Lisboa, para depois dar uma de folgazão: "I believe this is the beginning of a beautiful friendship". OK! Adiante! Eu disse preto e branco, porque entretanto surgiu uma cópia retocada a cores que eu simplesmente detesto. Não por ser um fundamentalismo cinéfilo, mas porque esteticamente acho medonho. As pinceladas de computador que anulam os vincos do preto e branco, não me convencem. OK! Adiante!
Vem isto a propósito do debate recorrente, por altura da Páscoa, sobre o Cristo histórico. A "Time", a "Visão", a "Veja", traziam mais uma vez artigos sobre o "Verdadeiro Jesus", "Como era o Mundo no Tempo de Jesus", etc. E, francamente, não vejo razão para tal alvoroço, porque esta é uma questão datada, fora de moda, e ao arrepio dos contornos socio-culturais aceites como válidos. Vejamos: a questão assentava, há 70 anos atrás (pasme-se com a atraso dos jornalistas, e alguns teólogos da nossa praça), numa distinção clara entre o Cristo Histórico e o Cristo Bíblico. A ideia era despir Cristo das roupagens (Ele que só tinha uma túnica!) teológicas dos Evangelistas e apresentar Cristo limpo de qualquer preconceito simbólico. Era o Cristo a preto e branco.
Ora, os teólogos e os historiadores actuais, desapaixonados e sem traumas liberais, afirmam que os relatos dos Evangelhos passaram por diversas edições, até chegarmos ao produto final que temos: um retrato teológico de Jesus ao vivo e a cores. Sem dramas. Sem problemas de cometer suicídio intelectual. Numa lógica holística, afirma-se que Cristo foi uma figura histórica conforme os relatos teológicos dos Evangelhos. É João que escreve: "Jesus fez muitos mais sinais na presença dos seus discípulos que não estão escritos neste livro; mas estes foram escritos para que creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo possam ter vida eterna no Seu nome" (20:31-31). Então, os Evangelhos não são biografias, no sentido clássico, de Jesus. Os escritores sagrados, inspirados pelo Espírito Santo (sim! A Bíblia é plenariamente inspirada pelo infalível sopro de Espírito) seleccionaram o que eles acreditavam ter poder para cumprir os seus propósitos, que era dar uma visão específica de quem Jesus era, e do que significava a Sua vida. Aqui, eu sou totalmente pela cor.
Um Cristo ao vivo e a cores, é um Cristo Histórico, encharcado no Cristo Bíblico. Cristo não é uma história da carochinha. É bem real! Cristo não é uma figura mística. Está carregado de símbolos teológicos! Talvez isto seja mais claramente expresso na tensão permanente que habita a figura do Cristo Ressurrecto. João apresenta o Cristo Ressurrecto com um corpo físico, desafiando Tomé para por o dedo nas cicatrizes, ao mesmo tempo que o retrata com um corpo espiritual a atravessar portas solidamente fechadas. Lucas diz que o Cristo Ressurrecto come peixe no churrasco para demonstrar que tem carne e sangue, mas também desaparece no ar depois do seu encontro com os discípulos de Emaús. Claramente, o Cristo Ressurrecto não é um mero cadáver animado. Nem é um Cristo Histórico a preto e branco. É um Cristo ao vivo e a cores! Que afirma o seu carácter histórico, e confirma a sua vocação teológica.
A isto chamo o "Escândalo da Graça". É uma graça escandalosa que Deus tenha habitado entre nós com uma cor definida de cabelo, uma tez de pele peculiar, uma voz de timbre próprio e uns gestos só seus. Isso é história. É do foro do Escândalo da Graça que Ele tenha morrido por mim, ressuscitando em carne para me trazer a esperança da Ressurreição futura, e a certeza de que a minha Fé não é cesto sem fundo. Isso é teologia.
O Cristo ao vivo e cores, brilha através das ambiguidades humanas, e eleva-se com a certeza de amanhãs ainda não sonhados.
Samuel Nunes

[Sem título]
As duas irmãs que, de joelhos, uma de cada lado de Cristo, olham para o irmão ainda envolto na mortalha . Tiveram de se ajoelhar perante a maior dor da sua vida que foi apagada. A Lázaro não se vê o rosto e a única expressão é a das mãos juntas, enfaixadas numa ligadura grossa. Está de pé e volta a ver luz após quatro dias Os pés brancos quase na sombra são ainda os pés de um morto. Mas as mãos já têm cor, talvez porque façam o gesto de devoção como quem ora. A luz incide-lhe por trás e ele é figura mais luminosa. Ao mesmo tempo, é essa luz nas costas que lhe lança a cara semi-tapada numa sombra que lhe retira identidade e expressão. Voltou da morte. Foi abençoado com o maior milagre. Já não precisa de um nome, de um rosto. Está liberto. Conheceu a Verdade, foi tocado por Deus.
Jesus está a meio metro dele. Braços esticados. Bem próximas do rosto de Lázaro, as mãos abertas como quem abençoa. Está descalço. Os seus pés são visíveis, têm cor, são vida. Veste uma túnica vermelha que recebe a luz de frente, tal como o seu rosto. Os olhos de Jesus estão fixos, concentrados no amigo por quem, talvez, ainda chore. Antes gritou 'Lázaro, sai para fora'. E é agora Jesus quem o recebe à saída do túmulo. Acaba de dizer 'Desligai-o, deixai-o ir'. Um personagem meio nu, envolto num pano vermelho, retira a mortalha a Lázaro. Está numa sombra pesada. Só se consegue perceber o seu gesto de assombro, querendo tapar a cara pelo terror que sente, num franco medo de quem obedece mas que não entende o que se passa.
Atrás de Jesus, um homem de capa negra e barba grisalha. De mãos apoiadas num bastão, talvez seja um cajado, olha o milagre como quem já está habituado. Parece reflectir. Tenta avançar no que pensa, compreender melhor. Será Pedro?
Um outro homem mais novo, ao lado do anterior, olha para Jesus, de cabeça baixa. Os olhos estão vermelhos, talvez tenha estado a chorar também. Há sentimento na sua pose. Respeito de quem ama. As suas mãos demonstram esse respeito amoroso, quase escondidas, entrelaçadas uma na outra displicentemente, esquecido de si perante o objecto da sua admiração. Penso em João.
Restam dois homens. Estão afastados ambos estão com expressões de espanto, talvez até de algum terror. Serão os judeus que antes comentaram, perante as lágrimas de Jesus, como ele amava o morto?
Excluindo o Cristo, sou todos os personagens deste quadro. Sinto o alívio da Salvação, o terror pelo miraculoso que a minha condição humana estranha, o espanto pela maravilha, o agradecimento pela Graça, a intelectualização do divino e, por fim, a entrega ao Amor. Penso isto e, ao olhar a reprodução dessa pintura do século XIX, não posso deixar de pensar na sensação de intemporalidade que o ser cristão me traz. A natureza do homem não muda através dos séculos, e a necessidade da Salvação também não.

Baseado na pintura de Léon Bonnat, 'Ressurreição de Lázaro',
João Leal

A parábola do paroleiro
Uma vez descobri a fórmula para a banal embalagem de cereais. Falo dos cereais de pequeno-almoço. Esclareço mais: falo dos cereais de pequeno-almoço destinados à pequenada. Nada tenho contra os outros publicitados para manutenção da linha, mas não me suscitam interesse nem apetite. As caixas desenhadas com poucos volumes e muitos espaços em branco são só atractivas à senhora que lhes augura uma miraculosa perda de peso (é preferível essa promoção pouco enganosa do que a escatologia explícita deste alimento rico em fibra).
Refreio dispersões e volto a falar da caixa para o pequeno-almoço dos mais novos. Depois de muitas analisadas, no mesmo número consumidas, consegui esboçar a minha embalagem fictícia. Ignorei informações nutricionais comuns nas faces mais pequenas. Igualmente o fiz com os habituais passatempos e promoções que usam figurar na parte de trás. O meu alvo era a frente, que chamo agora de “fachada” recordando o rigor arquitectural a que submeti tais considerações.
Tinha por base um rectângulo branco. O elemento a rabiscar em primeiro lugar representava o que, fotograficamente, deveria ser a tigela com os cereais em questão. Era essencial o pormenor do abundante fio de leite a cair sobre o recipiente e a rodear os pequenos e apetitosos flocos.
Logo a seguir surgia uma das partes mais importantes: a mascote. Num cruzamento estético entre Jim Henson e Walt Disney, o engraçado e simpático (ora carinhoso ora jovialmente rebelde) animal segurava a enorme colher que mergulhava na tigela. Algo aleatório na outra mão era o polegar esticado num punho cerrado. Fixe!
Em passos largos só faltava o nome a dar àquele alimento matinal. Podia guiar-me pelo sabor, estrangeirando pateticamente a palavra que lhe correspondesse. Tendo em conta a originalidade já era difícil criar curtos polissílabos a partir de “chocolate” ou “mel”. A outra estratégia era “onomatopeizar” no título as características estaladiças do cereal. “Krakos” era uma opção ridícula como qualquer outra. Aponto que no desenho das letras o primeiro K se ia desmembrando em pequenos estouros estaladiços. A combinação das duas estratégias descritas no parágrafo não só é funcional como frequente.
Basta. Não era sobre cereais que queria ou deveria falar. Quem já está habituado às minhas patranhas não deve estranhar este brusco desviar confessional. Para hoje tinha-me julgado capaz de condensar uma parábola moderna. Peguei nas de Jesus. “Depois de muitas analisadas, no mesmo número consumidas”, consegui esboçar a minha. Não, na verdade não consegui. Sabia os passos. Reconhecia morfologicamente a teoria, a necessidade de construir uma história que não fosse uma simples fábula com seu moral, uma história que captasse atenções, uma história que fosse contada para ser percebida mas também para o efeito contrário. Tinha a fachada, sabia o que desenhar, até conseguia descortinar os ingredientes. Tinha a personagem com o polegar esticado, tinha a tigela. Faltou-me o leite. Faltou-me o sabor impregnado nas letras. Faltou-me a anunciada alegria do pequeno almoço de amanhã na embalagem que hoje se vê. Faltou-me o leite, a água, qualquer sucedâneo.
Foi preciso assumir-me como personagem e reconhecer a minha inabilidade para, no fim da minha parolice, me aproximar microscopicamente de uma parábola. É por estas e por outras que não sou O Filho do Homem. Por estas e por todas as outras.
Samuel Úria

[Sem título]
Falar da morte é sempre um empreendimento difícil. Difícil e perigoso, devo acrescentar. Difícil e perigoso, desde logo, porque a ela estão associados dois inevitáveis aspectos: em primeiro lugar, cria-se o terrível sentimento para os que cá ficam de uma ausência inexplicável, de uma viagem sem retorno ou mesmo de um adeus que se não disse; mesmo para nós cristãos para quem a crença numa vida ulterior faz parte da nossa existência aqui. Por outro lado, a morte de alguém promove, em geral, uma análise parcelar da vida passada do defunto, o que nem sempre, para o bem ou para o mal, faz jus à verdade.
Tudo isto à laia de introdução uma vez que, mesmo correndo os riscos acima enunciados, gostaria hoje de falar de duas pessoas que nas últimas semanas deixaram de ser contadas no número dos mortais. A ambas conheci, embora de diferentes formas e em diferentes contextos. De uma todo o país falou, da outra, talvez uma pequena minoria de portugueses venha a falar.
O primeiro era o decano dos editores portugueses, o respeitado Francisco Lyon de Castro, dono de um significativo império gráfico e editorial no país. Nos nossos vários encontros este notável ancião sempre tinha alguma coisa para me ensinar, uma história para contar, um livro a recomendar – dos seus, claro está – ou até mesmo para oferecer. Confesso que por vezes me sentia um pouco intimidado perante tão notável vulto da nossa história recente, mas o Sr. Castro rapidamente se encarregava de fazer esquecer as formalidades e de me tratar de forma tão prosaica como se sempre me tivesse conhecido. Não vou repetir aqui o que o país já disse de forma justa sobre a excepcionalidade desta personalidade. Poucos ou ninguém, porém, terão dito que este homem desempenhou um papel muito importante para que os portugueses e outros falantes da língua portuguesa tivessem tido acesso mais facilitado à Bíblia. Embora não fosse pessoa religiosa – e até detinha convicções muito vincadas a esse respeito – nunca deixou que as suas ideias próprias fossem, de uma forma ou outra, impeditivas da circulação da cultura e do livro. Genro de pastor protestante, sempre manifestou um enorme respeito pela cultura protestante e na sua gráfica foram impressas, ao longo de quase 30 anos, centenas de milhares de Bíblias e outra literatura bíblica que têm chegado a dezenas de países no mundo. A sua intervenção foi também essencial para que as Publicações Europa-América tivessem editado em 1981 o Novo Testamento da versão bíblica O Livro.
O segundo homem foi um dedicado pastor baptista de nome Artur Soares. Para nós que o conhecemos ficará imortalizado como o “pastor do serrote”, ferramenta da qual conseguia extrair os mais belos sons. Foi um homem bom e afável e não me lembro que tivesse sido grande protagonista de disputas ou conflitos. Dele recordarei o entusiasmo com que falava e vivia a evangelização dos povos, começando pela do nosso. É uma daquelas pessoas que recordarei como vivendo aquilo em que acreditava. Não se lhe conhecem grandes teorizações ou modelos aturadamente desenvolvidos mas recordarei que a sua mensagem era coerente e constante quer fosse a cantar, a tocar, a pregar, ou a mostrar o filme Jesus como várias vezes o vi fazer.
Notável é quando continuam a existir pessoas que ficarão para sempre na nossa memória pelas suas convicções e pela coerência do que anunciam. Num mundo dominado por tantas hesitações, subjectividade, relativismo e situacionismo faz-nos bem irmos contando com alguns exemplos de consistência.
Timóteo Cavaco

sexta-feira, abril 16, 2004

Do editor
O número 15 d'Os ANimais Evangélicos traz:
- a bêdê em prosa do Pedro Leal
- o rebentamento do Judas pelo Timóteo Cavaco
- o atraso pascal do Samuel Úria
- o lado de dentro e o de fora da igreja, pelo João Leal
- o meu postal europeu
- e o céu do Paulo Ribeiro.
Partilhamos a bênção recente de possuirmos já os arquivos a funcionar. Nada mais nos será oculto.
TOC


"Por cada vale dos caídos há sempre um céu perfeito".

História aos quadradinhos
Ele espreguiça-se na cama. Braços esticados e boca aberta. Os cabelos compridos, em desalinho, são quase iguais ao do músico que, na parede, brande uma guitarra eléctrica. O rádio-despertador vai berrando as nove horas. Uma viola usada descansa contra os lençóis.
Ela termina a arrumação do quarto. Ajeita as almofadas de croché na cama metálica. Tudo está agora no seu lugar. Na mesinha de cabeceira, com o candeeiro de franjas em cima do naperon impecavelmente esticado, o relógio marca nove e cinco. Está dentro da hora. Já enverga o vestido domingueiro, com três botões à frente e colarinho debruado. O carrapito está feito e os óculos limpos.
Ele conversa com dois amigos no café. Gestos exuberantes, poses displicentes, risos. Começam agora os vinte anos. Na mesa vão ficando esquecidos dois cafés, outras tantas fatias de bolo, e um copo de sumo.
Ela toma o pequeno-almoço na cozinha. A ementa é a mesma desde há anos: uma chávena de café/cevada e um pedaço de pão. O gato dorme no tapete, a torneira do lava-louça não pinga, e a jarra, no centro da mesa, exibe as flores compradas na praça. A toalha é a dos domingos e dias de festa.
Ele acelera a mota na avenida com árvores. O blusão está fechado no peito, e os cabelos, com o vento, fogem do capacete.
Ela caminha no passeio. Sem pressa. A mala na mão, antiquada. De um lado os prédios, do outro a estrada. Passa um carro. Ela tenta reconhecer o condutor.
Encontram-se os dois à entrada do edifício da igreja. Sorriem. Ele põe-lhe a mão no ombro e diz:
- Bom dia, irmã.
Ela retribui, generosa:
- Bom dia, irmão.

(colaboração de Jorge Viegas)
Pedro Leal


[Sem título]
Na terra onde nasci – Tondela – existe uma tradição que foi apropriadamente relembrada no programa “Terra a Terra” da TSF no último sábado, precisamente o sábado pascal. Falo de uma iniciativa popular a que se dá o nome de “O Rebentamento do Judas”.
Não pretendo aqui explorar as implicações teológicas do tema, mas em abono da verdade, não se pode dizer que esta ideia seja completamente anti-bíblica. A verdade é que no livro dos Actos podemos ler: “Ora ele [Judas] comprou um terreno com o dinheiro que recebeu pela sua traição. Foi aí que ele caiu morto, tendo rebentado os intestinos, que se espalharam pelo chão” (1,18). Segundo o relato de Actos temos então aqui uma firme fundamentação da tradição da minha terra. No entanto, os exegetas e comentaristas não estarão assim tão seguros de que as coisas se tenham passado necessariamente dessa forma.
Parece que existem fundamentalmente duas tradições diferentes que procuram explicar esta obscura referência, tanto mais que nem se tem bem a certeza de qual seria a palavra ou expressão grega original. Temos uma primeira tradição veiculada pela Vetus Latina em que se procura harmonizar este relato com o do evangelista Mateus (27,5) e, assim, o texto deveria ser alguma coisa como “ele amarrou-se ao redor do pescoço e, tendo caído sobre o seu rosto, partiu-se pelo meio e todas as suas entranhas saíram para fora”. Uma segunda tradição, baseada nas antigas versões arménia e georgiana referem que Judas “inchando, estoirou e todas as suas entranhas saíram para fora”.
Não deixa também de ser interessante o facto de Mel Gibson pegar na figura de Judas, com significativa ênfase. Arriscaria mesmo a dizer que para além de Maria, Judas é a personagem a quem Gibson atribui mais material extra-bíblico.
Surgem, aliás, algumas cenas enigmáticas das quais destacaria as seguintes. A das crianças a zombar com Judas no seu caminho para o “campo de sangue” que, por alguma razão que pode ser meramente especulativa, me fez lembrar o episódio das crianças que igualmente haviam zombado do profeta Eliseu (2 Reis 2,23-24); o contraste aqui é entre o enviado de Deus (Eliseu) e o enviado de Satanás (Judas). Um segundo dado curioso é o do jumento morto junto ao local de enforcamento; esse animal bem podia simbolizar aquele em que Jesus tinha entrado em Jerusalém aclamado pelo povo, menos de uma semana antes.
Especulações ou comentários à parte a verdade é que a figura de Judas nos devia fazer reflectir muito mais do que na realidade o faz, para nós cristãos. Há um certo folclore envolvendo esta personagem, para muitos um mero instrumento desprovido de vontade própria, colocado ao serviço do plano redentor do Pai. Não vale a pena extrapolar o que os Evangelhos dizem sobre Judas, nem tentar conhecer o que está oculto. Por outro lado, também não vale a pena ignorar que Judas existiu e que ele fez parte do grupo seleccionado de discípulos de Jesus. A arte cristã muitas vezes encarregou-se de ocultar precisamente este facto, já que Judas é inúmeras vezes substituído por Paulo na contagem dos Doze.
A verdade é que Judas, pelo relato dos evangelhos, não parecia ser um indigente qualquer: até lhe foi atribuída a responsabilidade de coordenar as finanças do grupo o que, ainda hoje, não é uma função atribuída a qualquer um. Temos mais é que pensar em que medida a nossa ambição e o nosso protagonismo não estão muitas vezes a contribuir para que Jesus seja negado no mundo em que vivemos. Temos que apelar à nossa própria consciência e julgar-nos a nós próprios em relação às vezes que já agimos como “judas”…
Timóteo Cavaco

[Sem título]
A minha visão da Páscoa não é intimista. Seria pouco modesto pensar-me dono de emoções inéditas tratando-se de um “fenómeno” que aconteceu para todos. Na semana passada recusei escrever sobre a Páscoa por um motivo que encerra vários: achei-me indigno. Sei como funciono e como a “prosápia da prosa” acaba por contaminar, a meio, o que iniciei com boas intenções. Jesus morreu pelos que cometem o pecado da bazófia e ao menos na Páscoa esses deviam calar-se. “Eu sou um túmulo”, exclama-se comummente em promessas de abstenção no falar. Perante o “túmulo vazio” este ano decidi nada dizer. Calei-me.
Os minutos de silêncio institucionais premeiam o óbito de uma vida notável. Pela morte de Cristo deviam passar a horas. Pela notabilidade da Sua vida deviam ser acompanhados de lágrimas. Lágrimas de sangue quando nos for fisicamente possível.
É brutal o luto silente. Tão arrebatador que se torna um conforto apetecível, um empolgante momento de confraternização muda em estádios de futebol. Este ano eu quis festejar também os golos em silêncio, das lágrimas de dor passar às da comovida alegria. Dos gemidos sem som passar aos efusivos mutismos de felicidade.
As pessoas habituaram-se àquela ideia de que o Natal deveria ser todos os dias. Libertam o desejo de contacto amistoso com o anónimo, da boa-vontade emoldurada em saudações ao próximo. Não são maus sentimentos e têm o sabor daquela rodada geral que nos pagam só porque calhou estarmos num determinado café. O copo sabe-nos bem mas continuamos a desconhecer o aniversariante. E que tal Páscoa ser todos os dias? “Credo, tanto sangue!!”. Darmos os coelhinhos de chocolate ao nosso afilhado também não deixa as baterias do altruísmo lá muito carregadas, pois não?
Comparar a importância do Natal com a Páscoa é um exercício estulto. O menino Jesus na manjedoura e o Cristo ensanguentado são das dissociações mais imbecis que prevalecem, inconciliáveis, na mente humana. De que seria redentor um Deus menino que não viesse a ter chagas nas mãos?
Lembramo-nos de festejar o aniversário de Cristo. Lembramo-nos de celebrar o aniversário de todos os que nasceram de novo? Criaturas estranhas estas que escolhem uma cruz e um sepulcro como maternidade. Mais estranho de entre elas sou eu que pareço ter esperado uma semana para publicamente soprar as velas. Neste bolo não há transubstanciação. Quero as minhas velas sempre acesas.
Apelei ao silêncio próprio por ser indigno. Apelei ao silêncio próprio para não serem vãs as minhas palavras. Apelei ao silêncio próprio para gritar, de dor, arrependimento e alegria, sem abrir a boca. As palavras sem som também se esgotam e antes de verbalizar um agradecimento já me começa a escapar o lacrimoso “Tudo isto por um gajo como eu?”
Samuel Úria

[Sem título]
Queria escrever hoje sobre os que não se enquadram na Igreja. Há uma dor latente em todos eles e era sobre isso que gostaria de escrever. Sim, falar um pouco dessas pessoas que não se sentem confortáveis nas igrejas aos domingos. Relatar um pouco da solidão de quem persevera na fé por fora das instituições. Contar como a nova vida, com que foram agraciados por Deus após a conversão, lhes molda os passos e os pensamentos durante o dia. São pessoas admiráveis, que tiveram coragem de assumir um caminho só seu, por ser isso que faz sentido na sua vida de fé.
Queria escrever hoje sobre os que estão nas igrejas. Gostava mesmo de falar sobre esses que são a base do testemunho da mensagem de Deus ao mundo. Dizer como são importantes, como é belo que esqueçam as sua diferenças para trabalharem em unidade dentro da Igreja. Gostava de falar de como me traz alegria que se reúnam para louvar a Deus, num sentido de comunhão. Cada um assumindo uma função para que o corpo funcione o melhor possível, sempre buscando a orientação de Deus.
Queria escrever sobre como cada caminho é importante, de uma forma justa para todos e para com todas as suas diferenças na forma de viver a sua fé cristã. Mas receio que não o saiba fazer, já que me sei injusto nas minhas paixões.
João Leal

A Europa Idiota
O facto de me cruzar com Clara Ferreira Alves num pouco iluminado parque de estacionamento do Chiado fez-me ir recuperar uns escritos antigos. Há poucos meses a articulista escrevia um texto no Expresso em que apelidava os Estados Unidos de Nação Idiota, à boleia do caso “seio da Janet Jackson”. E se achei graça ao estilo acabei a leitura daquelas linhas convicto de que se Clara Ferreira Alves já visitou os EUs, provavelmente nunca lá esteve. Chesterton dizia que “o viajante vê o que vê, mas o turista vê o que veio ver”.
Aquela pluma caprichosa não conhece o que é o americano e não revela interesse em mudar a sua estação de ignorante. O desassossego do busto da cantora tornou-se paradigmático. Aquilo que CFA tenta escrever com sofisticação é o que todos já ouvimos das bocas impressionadas dos participantes de fóruns radiofónicos. O que é suficientemente revelador.
Deus amaldiçoou os europeus. Castigou-os a carregar uma presunção de virtude. O europeu é na filosofia e na política um grandessíssimo chato. Redondo na sua ortodoxia e emproado na sua verbosidade. A ferida aberta pelos fugitivos do Mayflower o Velho Continente nunca sarou. Como era possível fazer tábua rasa da experiência de séculos para ousar começar algo de novo no outro lado do Oceano?!
CFA não entende a raiz política do americano. O seu puritanismo, o seu apego patriótico, a sua visão comunitária da sociedade, os seus hamburgers. Interpreta porcamente, à laia do europeu ressabiado.
O facto de crescer relacionando-me com americanos ajudou-me e prejudicou-me. Qualquer jovem evangélico português é perturbado na sua latinidade pelo convívio desde o berço com os missionários ianques. Mas há por aqui bênção também. Se andasse pela outra banda do Atlântico borrifar-me-ia para a mama Jackson. Mas não me armava em intelectual europeu.
A grandeza da América está em ter mais intelectuais europeus que a própria Europa. E não lhes atribuir grande importância.
Tiago de Oliveira Cavaco

sexta-feira, abril 09, 2004

Do editor
O número 14 d'Os Animais Evangélicos dedica-se à Páscoa. Bendito calendário. Boas leituras.


"Hoje não há cá titulos de desenhos estranhos, por isso: A crucificação."

Shame on me
Quando acordei hoje de manhã liguei tropegamente o leitor de cds. A música levou-me a recordar coisas que se passaram há uns 11 anos. A associação de ideias para essa memória foi tão estúpida que não vou perder nem tomar tempo a descrevê-la.
Recuo mais de uma década. A minha turma do oitavo ano tinha Electrotecnia não era pouco frequente o professor ocupar-nos com qualquer coisa enquanto, sentado nas mesas mais atrás, analisava e soldava pequenos circuitos electrónicos. Numa dessas vezes incumbiu-me de passar no quadro qualquer coisa que não recordo, talvez revisões para o teste sumativo da aula seguinte. As folhas que eu transcrevia estavam na secretária dele e ao mesmo tempo, na outra ponta da sala, entretinha-se com o ferro de soldar e uma barafunda microscópica de resistências e transístores. Para meu espanto, um caderno aberto ao lado das folhas continha o que indicava ser a prova escrita da próxima aula.
Em cada viagem entre a secretária do professor e o quadro, fazia uma paragem na minha carteira onde ia, aos poucos, transcrevendo o teste sumativo. O desvio anormal da trajectória não era notado pelo ocupado mestre, nem mesmo quando se gerou a exagerada procissão dos colegas até à minha mesa, copiando cada um para si integralmente o enunciado.
Na aula seguinte fui esperto o suficiente para não acertar a totalidade das perguntas mas, quando o nervoso miudinho e o teste acabaram simultaneamente, chegou outra inexplicável sensação fria dentro de mim.
Às vezes temos reacções explícitas dignas de um figurante de novelas portuguesas: quando recebi os 90 e muito por cento no teste de Electrotecnia foi preciso grande alienação do professor para não notar a desmotivada e plangente apatia. Na adolescência quando estamos apaixonados reparamos nas letras das músicas românticas; quando estamos de consciência pesada reparamos nas «réplicas miniatura com asas de anjo que sobrevoam os personagens e lhes dizem “Shame on you!”» nos desenhos animados.
Dentro da igreja desaprendi a distinguir consciência de Espírito Santo. Toda a gente se sente mal mas nem toda a gente tem esse Espírito Santo: eu sentia-me mal como toda a gente. A raiz do desconforto é que era banalizada numa pessoa de menor consciência - seria essa a diferença que distingue quem tem o Espírito de quem não o tem? Era muito confuso para um puto de 13 anos que nem um teste de Electrotecnia fazia sem ajuda. O que desaprendi na Igreja é tudo culpa minha, culpa do emaranhar caótico da adolescência. Dúvidas e mais dúvidas. Afinal se o Espírito Santo é o Consolador, que raio de consolo era aquela inexplicável sensação fria?
Hoje em dia muitas vezes o desagradável e o agradável jungem. A dorzinha que insta ao arrependimento lembra-nos com um sorriso que ainda estamos suficientemente perto para sermos avisados. A fronteira entre manifestações do Espírito e da consciência está mais relacionada com o tipo e a direcção do arrependimento que urge do que com reflexões místico-filosóficas que se interponham. Não há lugar para confusões entre uma realidade que nos pesa e uma realidade que nos persuade. O Espírito convence-nos da justiça, do pecado e do juízo e nisso também Ele é consolador - se há coisa aprendida onde sinto um pingo de maturidade em 10 anos, nisto é.
Voltasse eu atrás e talvez tivesse confessado o “crime”. Já a consciência me pesa por proferir algo tão improvável. A cobardia é, com a estupidez, o pior inimigo do nosso carácter e há 10 anos conseguir um teste para os colegas sem vacilar era tido como acto heróico. A consequência do meu pecado é voltar a sentir o inexplicável frio desagradável de cada vez que recordo o episódio, mas lá está, estou ao alcance do aviso.
Quando me lembrei desta história ao acordar, não tive tanto em conta que já passava da uma da tarde. Um diabinho pequeno com a minha cara dizia-me que estava tudo bem porque não era dia de trabalho. Uma miniatura minha alada dizia-me, por sua vez, que não eram horas decentes para continuar na cama. O que sei é que para esta situação caricatural o Espírito Santo não é chamado.
Samuel Úria

[Sem título]
A imaginação da humanidade, ferida por actos inesquecíveis de Deus, não se consegue esquecer. Arrisco que algo parecido com o termo 'Arte' se possa aplicar a essa criatividade de Deus. Deus cansa-se, Deus esforça-se para que O possamos achar inesquecível. A surpresa! O espanto!
Deus, como escreve Jorge Luís Borges no seu 'Livro de Areia', preparou os factos da Sua revelação aos homens de uma forma inesquecível. A imaginação humana teria de ser ferida por toda a eternidade. Sim, o escândalo. O patético, até. Deus não se limitou a pôr burras a falar, nem anjos a esvoaçar por cima da cabeça de um monte de gente. Nem tão pouco se cingiu a aplicar recomendações espectaculares, como transformar a curiosidade feminina em sal ou matar centenas de primogénitos de uma vez.
O auge da, digamos assim, imaginação divina, está nessa ideia absolutamente revolucionária de encher a sua definitiva revelação ao Homem com o terror e o amor, numa espécie de concerto a duas mãos extraordinário.
Jesus interpreta a maior obra criativa de Deus. Ele fala de amor, de perdão, de salvação, da água da vida, faz milagres, traz alívio e cura. Há vozes vindas do Céu acompanhadas de pombas, episódios de saliva nos olhos que retiram a cegueira e de figueiras ressequidas a uma palavra. Há um passeio espectacular em cima da água e ressuscitação de mortos. Há multiplicação de pão e peixe. Há a transfiguração. Deus vai tecendo o
tapete com amor. Fornece o espectáculo, o malabarismo de simpatia e, nós, humanidade, aplaudimos todos essas vertiginosas acrobacias, contentes e maravilhados.
Mas, Jesus é traído, espancado, esquecido pela justiça dos homens, sofre na carne todo o processo de horror da crucificação e, enfim, morre. Deus marca-nos com o anúncio da traição ao próprio Judas, com a injustiça de Pilatos e do povo, com os pormenores da coroa de espinhos, do perdão de último minuto ao criminoso, com suor de sangue, com o grito lancinante antes do estertor final, com as nuvens negras a cobrirem tudo ou com o véu do Templo a rasgar-se. Que urdidura de terror ao ponto de dispersar os discípulos, de fazer crer que tudo tinha ruido! Deus, aqui, faz-nos suster a respiração, dá-nos um grande estalo na cara, murro no estômago. A sua 'arte' é também o choque. sempre para que não esqueçamos.
Mas a obra ainda não está completa. Sim, a humanidade ainda não teria sido ferida na sua imaginação por Deus se tudo ficasse por aí. Deus retoma as linhas triunfantes do amor na sua obra aquando da ressurreição de Cristo. O amor triunfa num golpe artístico e poético brutal e incontornável.
O terror fica, pode-se dizer, aprisionado entre dois maravilhosos actos de amor. Fica encaixado e já não poderá ser esquecido pela humanidade, enquanto a mensagem de amor e esperança de Deus é marcada a ferros na imaginação humana para sempre.
Para ter fé, é necessário usar a imaginação. Quem se esquece disto, mata a esperança, reduz a mensagem de Deus ao homem a qualquer coisa, sei lá o que é isso que tantos usam, inútil.
João Leal

[Sem título]
Na secção literária do hipermercado. Um destaque publicitário, o único visível para quem passa nos corredores principais, anuncia “bíblias”. Paro. Torno a reler. Confiro mais duas vezes e, já sem dúvidas, vou até lá. Encontro bíblias infanto-juvenis. Várias publicações de diferentes tamanhos. Com o entusiasmo um pouco refreado, para adultos só há uma colectânea de “pensamentos bíblicos”, folheio os livros tentando avaliar a fidelidade ao texto original. Descubro sobretudo histórias condensadas, com muitas ilustrações: David e Golias, Noé na arca sobrelotada, Zaqueu falando com Jesus do cimo da figueira. A exactidão dos relatos parece-me, em média, razoável. Destaca-se, neste aspecto, a tradução de um título inglês contendo os resumos, ou os episódios mais significativos, dos livros do Velho e Novo Testamento. No último capitulo, dedicado ao Apocalipse, uma agradável surpresa. A história bíblica fica em aberto. Numa mensagem profundamente evangélica, o livro encerra com a exclamação, plena de esperança, do Apóstolo João:
- Ora vem, Senhor Jesus!
Nestes tempos de pessimismo generalizado, precisamos de saber reconhecer, e valorizar, o que de bom vai acontecendo. Como, por exemplo, o facto de nunca como agora a Bíblia estar tão acessível aos portugueses.
Ainda não há muitos anos a afirmação de fé dos evangélicos passava pela exibição pública do livro de capa preta, a caminho do culto dominical. Hoje qualquer adolescente que frequente a catequese católica faz o mesmo sem correr grande risco de ridicularização.
No início do século passado, os colportores sofreram todo o tipo de privações para fazer brilhar alguns exemplares da Palavra de Deus no meio da escuridão romana. Hoje os hipermercados vendem porções e adaptações das Escrituras, e as prateleiras esvaziam-se.
É certo que muitas dessas adaptações falham na correcção doutrinária, e algumas delas apresentam as Escrituras como se de fábulas se tratassem. Também o espaço dedicado ao esoterismo, à astrologia, e outras superstições do género, ultrapassa largamente o concedido à Bíblia.
No entanto, esta presença crescentemente assídua no nosso quotidiano é importante. Porque significa que a mensagem mais importante alguma vez dirigida ao Homem vai alcançando novos leitores. E isso só pode ser uma boa notícia.
Pedro Leal

[Sem título]
Num ano em que a Semana Santa fica inevitavelmente associada ao filme de Mel Gibson “A Paixão de Cristo”, talvez convenha relembrar como os teólogos têm interpretado ao longo da história do Cristianismo o tema da morte de Jesus. De facto, numa questão tão central para a fé cristã é natural que haja diferentes opiniões e diversas sensibilidades pelo que importa compreender como elas se articulam.
Concorde-se ou não com a perspectiva de Gustaf Aulén em Christus Victor, a verdade é que este autor nos dá um bom resumo de como a Cristandade tem entendido o tema da expiação ao longo dos séculos. Para este autor, há fundamentalmente três épocas e três principais influências na compreensão do tema.
A perspectiva Clássica foi defendida logo no início do Cristianismo por alguns Pais Gregos, sendo que a mesma dava ênfase à vitória que Cristo outorgou às forças das trevas através, nomeadamente, da sua ressurreição. A perspectiva Latina começou por ser tratada de forma mais sistemática por Santo Anselmo (séculos XI-XII) e encarava a morte de Jesus na cruz como a satisfação da justiça divina e do perdão dos pecados. Santo Anselmo é mais conhecido pelo seu Argumento Ontológico para a existência de Deus, mas não pode ser ignorado o seu fantástico trabalho na temática aqui abordada com a obra Cur Deus Homo (“Porque Deus se tornou homem?”). Finalmente, a perspectiva Subjectiva teve como grande defensor Pedro Abelardo, que foi um verdadeiro elemento de charneira – tanto cronológica como ideologicamente – entre Santo Anselmo e São Tomás de Aquino. Esta perspectiva dava mais ênfase à resposta pessoal ao amor de Deus manifestado em Cristo, tendo sido perfilhada mais tarde (Século XIX) pelo liberalismo teológico.
O conceito de expiação prevalecente no Protestantismo na época da Reforma foi fortemente influenciado pela perspectiva de Santo Anselmo, podendo a sua formulação ser facilmente suportada pelas teorias da eucaristia memorial de Zuínglio e da justificação forense de Melanchthon. Neste campo, Zuínglio opunha-se tanto ao conceito católico tradicional da transusbstanciação (o sacrifício repetido na celebração eucarística) como ao conceito luterano de consubstanciação (a presença simultânea de Cristo na eucaristia e simbolicamente no comungante).
Melanchthon olhava também para o sacrifício de Cristo como algo que ocorreu na história, ou seja, no passado e de uma vez por todas. Aliás, a palavra inglesa que traduzimos por expiação – atonement – tem esta assonância: at-one-moment, num único momento. Ou seja, Cristo já fez tudo, nós somos apenas receptáculos imerecidos da graça de Deus.
Ainda assim há diferenças entre os dois, sendo que Zuínglio tendeu mais para a linguagem do que mais tarde viria a ser conhecido como a da Substituição Penal, enquanto Melanchthon recorreu mais aos conceitos de satisfação encontrados em Santo Anselmo.
Na verdade, este como muitos outros temas na teologia não podem ser tratados com leviandade nem se pode ter a pretensão de obter uma resposta final e definitiva para algo tão central e tão tocante para cada um dos cristãos. Acredito sinceramente que cada um de nós estava lá presente naquele momento em que os cravos foram enterrados na pele e na carne de nosso Senhor Jesus Cristo. Acredito que mais do que atribuir culpa aos judeus ou aos romanos é importante que reflictamos sobre a nossa responsabilidade individual e sobre a culpa que Jesus suportou em nosso lugar. Não haverá melhor maneira de celebrarmos esta Páscoa.
Timóteo Cavaco

Do restaurante para o calvário
Os evangélicos têm o hábito de dividir os actos humanos entre aqueles que edificam e os outros. No meio desta aritmética bem intencionada para além de uns atropelos ocasionais, de uma dose relevante de incompreensão, e até um tímido convite a uma simplificação perigosa, existe um desejo de pedagogia. Para a vida. E isso é muito bom.
Devo afirmar que das bênçãos do último ano, o convívio com bons interlocutores católicos destaca-se. Conheci o João, o Rui, o José, o Miguel e o Carlos. Partilhei com eles mesas de restaurantes. Sem hóstias e púlpitos, sem preces e paramentos. Continuo um saudável anti-ecuménico. Mas um entusiasta da inter-confessionalidade (o meu primo, Timóteo, aqui de cima, foi o primeiro que conheci a usar o termo desta forma). E agradeço a Deus por tudo o que tenho aprendido com os meus novos amigos.
Uma das coisas que tenho admirado nesta mão cheia de bons cristãos é a seriedade do seu pensamento. Ajuda-os, é certo, a tradição romana com disciplinas como a meditação. A sua instrospecção é para mim inspiradora. Esta Páscoa será em muito diferente graças ao exemplo da fé que deles tenho recolhido.
Nesta sexta-feira recai sobre a cristandade uma séria responsabilidade. A memória da morte do seu Senhor não é tarefa fácil. Talvez pela primeira vez na vida tento fazer destes três dias uma reflexão profunda sobre a importância do que aconteceu. Começo aos 26 anos. Podia ser pior.
Paralelamente, as banalidades que se dizem sobre a morte e a ressurreição não precisam de defensores. Já há muito que ganharam o seu próprio espaço. Desde discípulos gaguejantes a revolucionários de serviço, todos têm uma palavrinha sobre o valor universal destes acontecimentos. Um Jesus para todos, dizem, para os que crêem e para os outros. Como se a fé fosse uma jornada de reflexão sobre o buraco de ozono promovida pela Junta de Freguesia de Corroios.
A cruz é inescapável. Não me parece local para arroz-doce e boas intenções. Símbolo de fé para muitos, sinal de vergonha e desprezo para muitos mais. O sacrifício do nosso Senhor não pode ser materializado numa colectânea de soluços filantrópicos para um mundo em crise. Os cobardes raramente derramam o seu sangue.
Não nos orgulhemos por estar do lado dos crentes. Reviver a páscoa nesta banda deveria lembrar-nos dos varapaus, do beijo, do chicote, da impotência para defender o Mestre, da visão horrível da sua morte, do medo, da ausência de perspectivas futuras, da incredulidade, da dificuldade de reconhecer o regresso do Senhor. Passam-se melhores férias sem qualquer uma destas coisas.
Tiago de Oliveira Cavaco

Que fazem na Páscoa os ateus?
Gosto da história do Filipe que tinha Síndroma de Down e era posto de parte pelos seus colegas. Um dia, durante a época da Páscoa, a professora para tentar ilustrar esta verdade tão bonita do renascer da natureza e da Ressurreição de Cristo, deu uma caixinha de cartão a todos os alunos da classe. Tinham uma missão: ir para o campo e trazer de volta um símbolo da Páscoa. Os garotos foram em alegre algazarra cumprir a tarefa. De volta, colocaram as caixinhas em cima da mesa da professora. Um a uma a professora foi abrindo as caixas. A primeira tinha lá dentro uma borboleta que saiu voando assarapantada. “Que lindo!” – exclamaram as crianças. A caixa seguinte continha um ramo singelo de flores silvestres. “É a natureza a voltar à vida” – dizia a professora, passando a outra caixa. A caixa seguinte estava ... vazia. Simplesmente vazia. “Assim não vale” – disse a miudagem – “alguém fez batota”. “É minha” – interveio o pequeno Filipe. “Pois é, nunca fazes nada de jeito” – gozaram os colegas. “Eu fiz bem! Está vazia porque o túmulo também estava vazio” – explicou o Filipe. O silêncio que caiu na sala foi espantoso e luminoso. Compreenderam.
Por vezes pergunto-me o que fazem os cépticos e os não-crentes durante a Páscoa? No natal sabemos. Comem peru engordado no aviário. E na Páscoa? Comem borrego!? Certamente que não! Não podem partilhar do símbolo máximo da morte e Ressurreição de Cristo. Seria, digamos, ... incoerente! Na Páscoa, quando a Igreja de Cristo celebra o Seu poder sobre a morte e a esperança da restauração futura da natureza, que fazem os ateus!? O humanismo poderá ajudar para o dia a dia desta existência bacoca, mas deixa qualquer céptico-ateu-descrente, vazio diante dum túmulo frio. Porque ninguém pode escapar à realidade da morte. Quer estejamos no outono da vida ou no seu clímax, todos seremos confrontados com a morte. Por exemplo, quando o leitor acabar de ler este post, 5 pessoas terão morrido à volta do mundo.
Mas, o céptico pede um sinal. Provas e documentação. Que provas? Que informação? Há mais evidências da Ressurreição de Cristo do que há sobre a existência de Júlio César. Há mais provas sobre a morte e Ressurreição de Cristo do que factos que provem que Alexandre o Grande morreu com 33 anos. Os cépticos são uns ingénuos aceitando milhões de factos minúsculos sobre uma miríade de coisas, sobre as quais existem apenas fios ténues de evidência. Cristo durante a Sua última semana de vida teve uma frase demolidora: “da boca dos pequeninos e crianças de peito tiraste perfeito louvor” (Mateus 21:16). Mas é claro que os cépticos e os ateus deste mundo, serão “crescidos” de mais para louvarem a Deus. Resta-lhes uma alternativa coerente com a sua descrença. Enfiem-se num túmulo frio e inóspito, enquanto os cristãos festejam. Olhem, o de Cristo está vazio. Ele não precisa dele. É que os vivos não têm necessidade de túmulos.
Samuel Nunes

sexta-feira, abril 02, 2004

Do editor
No número 13 d'Os Animais Evangélicos:
- o Samuel Nunes sustenta o cosmos em vez do caos
- o Pedro Leal tenta explicar o outro lado da fé ao colega Luís
- o Samuel Úria narra a história da Dona Laurinda
- o Timóteo Cavaco recorda o habitante de Lanzarote
- eu inclino-me para as questões do ventre
- e o Paulo Ribeiro, em apropriada ocasião, relembra a última ceia.
O costume - imprimir e ir lendo.
TOC


"Judas o traidor, Jesus e os discípulos"

Prédicas para os esfomeados
Apesar de Jesus praticar muitos milagres, os seus sermões não mataram a fome aos ouvintes. O Mestre tinha de apelar à criatividade dos discípulos para suprir o apetite da congregação. As palavras nunca satisfizeram estômagos.
Os evangélicos, historicamente habituados ao convívio com cada centímetro das Escrituras, carecem de reaprender o valor da Palavra. A primeira lição será entender que a revelação de Deus não é, em si, divina. E, que com tamanha ousadia em querer emendar o soneto, reconhecer que reduzir a nossa relação com a Boa Nova a um curso técnico intensivo é uma grande asneira. Não se pode falar do plano do Criador para o Homem como quem vende um aspirador super-sónico.
É frequente ouvirmos a expressão de que a Bíblia é o "manual de instruções". Ela é nos nossos dias infeliz. E os discípulos sempre foram especialistas rançosos. A sua assertividade titubeante, a sua convicção gelatinosa. Melhoraram substancialmente na ausência física de Jesus. Mas nunca se limitaram a ser delegados comerciais do evangelho com comissões chorudas.
Quando nos convencemos que a transmissão da fé depende da visibilidade da nossa opinião pública e dos decibéis dos nossos serviços de culto ficamos longe de compreender o estado das coisas. Nesta palestra inesperada o prelector fala uma língua diferente do auditório. Não há como evitá-lo. A conversão não é o dialecto do senso comum. O que de melhor se arranja como tradutor é o Espírito Santo. Paulo diz-nos no oitavo capítulo de Romanos qual o método de interpretar que está em causa. Interceder "por nós com gemidos inexprimíveis".
Tiago de Oliveira Cavaco

[Sem título]
Durante esta semana a senhora Ministra da Justiça anunciou na Assembleia da República, com pompa e circunstância, o fim do “balde higiénico” nas prisões, para muito em breve. Não pretendo ser irónico para o Governo da República e muito menos para aqueles que no século XXI ainda se têm que sujeitar a esta prática humilhante, mormente os que precisamente se encontram reclusos. Mas, a verdade é que esta declaração – que não sei se passou de forma meramente incidental na comunicação social – me fez pensar no sentido mais profundo da solidariedade. Muitas são as misérias deste mundo e de nada valerá a pena estar aqui e agora a expressar falsos sentimentalismos. No entanto, a realidade brutal é que existem inúmeros submundos na nossa civilização que só ascendem ao nosso conhecimento – tão mortais cidadãos quanto os protagonistas destas situações – por mera casualidade. Razão tinha Jesus ao dizer que não veio curar os sãos mas os doentes. É certo que os doentes não são só os desvalidos, marginalizados e excluídos da sociedade. Muita miséria moral e espiritual há por aí nos mais mediáticos símbolos da vida pública. Este é o cabal paradoxo do mundo em que vivemos, seja neste século seja nos séculos passados ou vindouros.
Por falar em contradições e paradoxos, foi esta semana lançado mais um romance do nosso Prémio Nobel (por favor, não acentuar a pedido do laureado…) José Saramago. Quer se goste quer não, ele é genial, pois de outra forma talvez não se falasse tanto nele. É ele próprio paradoxal – veja-se o seu dilema deliberadamente não resolvido de apelar militantemente ao voto em branco e ao mesmo tempo ser candidato, meramente formal, às próximas eleições para o Parlamento Europeu – e gera “paradoxalidade”, por exemplo a mim, que consigo não concordar com quase nada do que ele diz e ao mesmo tempo apreciar as suas palavras, a forma como as diz, mas principalmente como as escreve. Para um fraco leitor de ficção como sou, ter lido três romances de um mesmo autor é um verdadeiro recorde, descontando os geniais clássicos portugueses como Eça ou Camilo que devorei na adolescência. Sem dúvida polémico, e essa faceta não lha invejo, Saramago consegue convencer um público relativamente diverso, talvez porque tendo falhado em muitas coisas na vida – ou ele próprio ou aquilo em que acreditava – finalmente se assumiu como um fantástico contador de histórias (recuso-me a dizer “estórias” – isso não existe!), um fabulador, um inventor de metáforas, muitas vezes muito mais um argumentista que um autor. Reconheça-se-lhe a virtude da imaginação não necessariamente na invenção, mas certamente na manipulação, muitas vezes quase genética, das suas personagens. A forma como cidadãos comuns se entrecruzam com personalidades históricas é soberba: quisera eu ter a capacidade de imaginar o padre voador ser amigo de Baltasar e Blimunda e páginas depois ter o rei cujo documento mais veraz da sua existência está lá em Mafra, tão pétreo e sólido como há quase três séculos atrás.
Como Blimunda se calhar muitos de nós conseguimos ver para além da pele, mas vendo nada podemos fazer. Se calhar, andam para aí muitas Blimundas que não querem dizer que o são, têm vergonha. Esta semana ouvi o próprio Eduardo Prado Coelho dizer que escreveu uma crónica no Público – a qual não li – sobre a entrada no estacionamento do “El Corte Inglés”. Pensava eu que era o único que me sentia enjoado a dar tantas e tantas voltas com a sensação de que aquilo nunca mais vai acabar. Afinal, isso até já é motivo de crónica. Quando andava na tropa e um qualquer cadete trocava o passo em relação ao restante pelotão, o tenente imediatamente gritava: “só você é que está bem!”. Às vezes ando no mundo com esta sensação de que afinal ando para aqui com o passo trocado, mas também que aqui e ali se vão encontrando umas Blimundas, uns cadetes confundidos, que não querem simplesmente aceitar como final aquilo que parece tão evidente.
Timóteo Cavaco

[Sem título]
A dona Laurinda ouviu bem cedo que a religião não salva. Perdeu-se na semântica e achou-se a pluralizar: se “a” religião não salva talvez “as” religiões o façam. Apesar de lhe ser estranha qualquer terminologia matemática, compreendeu muito bem como aumentar probabilidades.
Bendizia dominicalmente o laivo de emancipação que exigira em idos anos 50. Fizera inveja às moças humildes da terra quando aos 20, contra tudo e contra todos, tirara a carta de condução. Assim sendo, 50 anos volvidos, era um Rover cor-de-vinho o primeiro templo onde Laurinda, aos Domingos, assentava pé.
Perto da Igreja matriz de Monsaraz nunca faltaram lugares para estacionar. Enquanto a viatura avermelhada gozava a sombra de um largo carvalho, a proprietária empenhava-se na missa, semelhando os pormenores litúrgicos que nem sempre teve na ponta da língua. Mas nessa ponta custava-lhe o poisar da hóstia; uma estranha aspereza de dentes assolava-a. Não prestava atenção e sentia-se elevada pelo boçal sacrifício bucal. No meio da apoteótica comichão nas gengivas muitas vezes recordou-se, por outro nome, das probabilidades. Imaginava que cada pedaço de Cristo tragado era um degrau galgado rumo ao Céu.
A frugalidade do “corpus christi” justificava-lhe o segundo prato de cozido no restaurante da afilhada. Na degustação dos enchidos, na insistência (sempre recusada pela afilhada) em pagar a conta, no atestar do Rover numa bomba ao pé dos Correios, na sesta de hora e meia, em tudo, seguia com religiosidade a dogmática tradição dos domingos.
O plácido sono durava até às quatro e picos, mesmo à justa para conduzir uns quilómetros até à Igreja Evangélica da Assembleia de Deus. Ali tudo era diferente, mais desprendido, com esquemas menos rígidos. Laurinda não se sentia com idade para improvisos cerimoniais. Antes tentava enquadrar uma estratégia cujos movimentos cobrissem qualquer situação. Quase perdeu a compostura quando o corpulento brasileiro na bateria se desfez em rufos e taroladas. Quase se forçou a perdê-la quando o dom de línguas começou a tomar alguns dos mais efusivos no salão de cultos. A emancipação na condução não a impediu de acabar a escolaridade antes que aprendesse uma única palavra em francês. Todavia, enquanto vociferasse coisas ininteligíveis, Laurinda sabia que as suas hipóteses no Paraíso só poderiam aumentar.
Num febril Sábado à noite de Verão, a septuagenária ajoelhava-se e alternava rezas com orações. Conhecia bem a destrinça e, depois um Pai Nosso e antes de uma Ave Maria, entregava-se ao (mesmo assim estereotipado) diálogo com Deus mais usual na faceta protestante. Pediu ao Senhor que a ouvisse e que a guardasse do mal. Quem não a ouviu, com certeza, foi o Rover cor-de-vinho.
A manhã do dia seguinte começou como as de todos os outros domingos. Na estrada até à Igreja matriz, a dona Laurinda deu pela falta da carteira. O descuido era embriagador, mesmo que a afilhada nunca aceitasse dinheiro ou que o depósito ainda tivesse suficiente gasolina. O dia do Senhor só o era com a carteira à mão. O escrúpulo rotineiro era a maior veneração para onde poderia direccionar o seu fervor religioso. Se acelerasse talvez pudesse voltar a casa e de novo à Igreja. Era perigoso qualquer benzer não precavido de costumes, mas mais perigosa foi a inversão de marcha.
Colhida pelo camião de mudanças que vinha no outro sentido, Laurinda teve a morte num instante. A confundida alma viu-se rodeada de uma inaudita escuridão.
-Estou…estou no purgatório? – perguntou titubeante.
-Oh minha senhora – disse a voz respeitosa à beira de esgotar uma infindável paciência – com franqueza...Você não percebe mesmo nada de nada!
Samuel Úria

[Sem título]
O espanto do meu colega Luís ao descobrir que o Novo Testamento é implacável com os preguiçosos. Revelo-lhe que “quem não trabalha não come”, e encaminho-o para II Tessalonicenses 3:10.
O Luís nunca ouvira falar da passagem, nem imaginava que o livro dos cristãos pudesse ter palavras tão inflexíveis. Frias. Ele conhece melhor a versão fixe do Cristianismo. Repleta de intenções de solidariedade e acolhimento. Pouco pecado, pouca Lei, pouca justiça divina. Porque os púlpitos mediáticos vivem de share. E um discurso exigente e pouco amigável torna-se, nessa altura, contraproducente. A "paz no mundo", o grande desígnio, precisa sobretudo de consensos. Rupturas são atitudes prejudiciais. Perigosas. Coisas de fundamentalistas.
Um dia ainda hei-de explicar ao meu colega Luís a dimensão e as implicações da santidade de Deus. E de como o Criador realizou o milagre de conciliar essa justiça com o amor, através de Jesus Cristo. Por agora, limito-me a denunciar o Pai Natal que lhe venderam como realidade divina. Essa caricatura bonacheirona que ele não respeita nem teme.
Para a próxima oportunidade já tenho reservado as palavras de Jesus em Lucas 12:51: “Cuidais vós que vim trazer paz à terra? Não, vos digo, mas, antes dissensão”.
Pedro Leal

Cosmos ou Caos?
O geneticista galês, Steve Jones, esteve recentemente em Portugal para lançar o seu último livro “Y – A Descendência do Homem”. Basicamente a ideia central do livro resume-se ao facto do sexo começar como uma relação de parasitismo, e o gene masculino Y estar em guerra aberta constante, com o gene feminino X – a genuína guerra dos sexos. Posto isto, Steve Jones chega à conclusão de que os machos irão desaparecer daqui a uns confortáveis 10 milhões de anos. O pensamento de Jones é fascinante e daria para um post espectacular aqui nos “animais”. Todavia, foi uma frase sua mais rudimentar que me despertou a atenção esta semana. Cá vai: “A ciência não consegue responder à pergunta que os filósofos e as crianças fazem: porque estamos aqui, qual o sentido da vida, como nos devemos comportar? A genética nada tem a dizer acerca do que nos torna mais do que máquinas motorizadas pela biologia. Nada nos diz sobre o facto de sermos humanos.” Pensando nestas questões chego à conclusão de que a ciência não tem muitas das respostas às perguntas mais pertinentes da existência. Ora vejamos!
1 - A ciência nada diz sobre o porquê da existência do universo
A 1ª e a 2ª lei da termodinâmica dizem-nos que houve um momento em que surgiu a energia, a matéria e o espaço. Mas assim que chegamos ao ponto em que a física deixa de operar, a ciência fica silenciosa. Não explica nem descreve a origem das coisas. Stephen Hawking revela: “embora a ciência consiga resolver o problema de como o universo começou a existir, não resolve a questão de porque é que ele se dá ao trabalho de existir?”
2 – A ciência nada diz sobre a razão de existirem leis naturais
A ciência existe e funciona, como disciplina, porque as leis naturais são consistentes e fidedignas. Os cientistas assumem que essas leis são válidas, consistentes e previsíveis. Mas porque é que elas são assim? Porque não impera o caos? Porque não se instala a anarquia?
3 – A ciência nada diz sobre a afinação detalhada do universo
A actual busca desesperada de vida inteligente em Marte, baseada em minúsculos espelhos de água, só revela um reconhecimento de que o nosso planeta tem condições especiais para a existência da vida. Para que o planeta azul, a Terra, tenha vida como tem, é necessário uma combinação cuidadosa e complexa de factores terrestres e extra-terrestres. A velocidade de rotação da terra, a inclinação do seu eixo, a distância do sol, tudo tem de ser milimétrico para que a vida possa existir. O carbono tem de ser na quantidade certa e o oxigénio também. 1cm cúbico a mais ou a menos seria fatal para os nossos pulmões. Só é possível tal exactidão com um arquitecto por detrás.
4 – A ciência nada diz sobre o nosso carácter humano
A ciência não consegue explicar porque é que somos humanos e não meras máquinas. Porque somos seres emotivos e não andróides.
5 – A ciência nada diz sobre o funcionamento do cérebro e o porquê dele funcionar assim
Basta ler a obra de António Damásio para chegar a esta conclusão.
6 – A ciência nada diz sobre a qualidade de vida
A tecnologia, a deusa da nossa sociedade, toca na nossa forma de estar na vida, em termos de saúde (espectacular os avanços nas operações intra-uterinas), conforto (adoro os sumiês), e comunicação (que seria de nós sem a blogosesfera?), mas nada acrescentam às qualidades internas da vida em si. Os problemas da ganância, do egoísmo e do terrorismo podem ser descritos pela ciência com uma precisão matemática, mas não podem ser resolvidos por essa mesma ciência.
7 – A ciência nada diz sobre ética
Nos anos recentes têm-se registados muitos avanços nas áreas da socio-biologia e das ciências comportamentais. Avanços determinantes. No entanto, ficam por explicar as essências da justiça, da liberdade, da beleza, da estética, da satisfação e da paz. A ciência não diz nada sobre a forma da nossa consciência actuar nestas áreas fundamentais. Ou seja, não conseguimos saltar dos átomos para a ética, nem das moléculas para a moral.
Por isso pergunto: o que nos impede de resvalar do cosmos para o caos? Os crentes dirão: Deus. Os ateus dirão: ????? Eu prefiro uma solução a uma não solução. Mesmo aqui a ciência nada diz. A ciência não consegue provar a não existência de Deus, simplesmente porque é impossível provar uma negação universal. Para tal ser acontecer teria de ser possível ter todos os factos do universo na mão. Como isso não acontece, então a existência de Deus é uma possibilidade intrínseca. Deus não pode ser descartado à partida. Para mais, vivemos num cosmos em vez dum caos.
Samuel Nunes

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O CORREIO ANIMAL DO LEITOR

Queridos animais,
Há já algum tempo que ando para vos escrever, mas nunca surgiu a oportunidade. Sou leitora e apreciadora assídua da vossa publicação e devo confessar que já fui várias vezes surpreendida por uma lágrima traiçoeira (os "remembers" do Sami), uma gargalhada inesperada ou um firme aceno de cabeça provocado por alguns assuntos abordados. Não é o grau de parentesco que me une à maioria que me leva a dizer isto, mas vocês estão de parabéns!
Agora as sextas são marcadas por outros Independentes!
Marta Cavaco